A literatura nacional, mas nem tanto assim

Alan de Sá
Explico melhor escrevendo
6 min readAug 7, 2019

Nos últimos anos, a crise no mercado editorial explodiu. Não era algo que não se pudesse prever: uma hora o sistema prejudicial a autores e editoras pelos grandes grupos de livrarias iria quebrar. E quebrou. Não à toa a Saraiva encerrou o último mês de junho com um prejuízo de R$ 22mi e é alvo de ações de despejo em 33 das suas 75 lojas.

Nesse mesmo tempo, o mercado independente começou a se adaptar. O surgimento de pequenas e médias editoras — além de grupos editoriais, como a Coesão — , a exploração da Amazon como forma de sobrevivência, o crescimento de antologias literárias e, nos últimos anos, as campanhas de financiamento coletivo em plataformas como o Catarse.

O Catarse, aliás, têm se tornado a nova galinha dos ovos de papel do mercado. Não à toa o Grupo Record resolveu apostar na plataforma e criar uma campanha com meta de espantosos R$ 250 mil para o relançamento da Tetralogia Angélica, já consagrada no mercado literário nacional — a obra de Eduardo Spohr. E, não surpreendentemente, 41% da meta já foi alcançado, faltando mais de cinquenta dias para o final.

Talvez a inspiração para a tradicionalíssima do mercado tenha vindo de uma concorrente menor: a Aleph que, em 2018, conseguiu impressionantes R$ 460 mil numa campanha de pouco mais de R$ 370 mil para uma edição de aniversário de 2001: Uma Odisséia no Espaço, de Arthur C. Clarke. Campanha esta que foi exclusiva para a plataforma, não tendo exemplares comercializados em mais nenhum lugar.

Seria justo, nessas circunstâncias, ainda dizer que a literatura nacional está com problemas, uma vez que, mesmo com os grandes grupos de livrarias em crise, ainda existe apoio com as produções literárias?

Sim. Mas vamos explicando por partes

Representatividade

A produção literária, sobretudo independente, segue a tendência do mundo de falar sobre minorias representativas. Os livros com temática LGBT+ cresceram em plataformas como Wattpad e Amazon (ainda que esta segunda ainda viva a "síndrome dos CEOs"), personagens femininas como protagonistas fortes e decididas, além dos projetos inclusivos no meio independente.

O que estas produções, em alguns casos, pouco se preocupam é a representatividade de quem produz as obras. Se autoras são a maioria na Amazon, isto não se reflete na quantidade de autoras negras; os destaques da literatura de gênero do mercado independente, em grande maioria, são sulistas, de pele branca e classe média-alta; as editoras de pequeno e médio porte que figuram todos os anos nas bienais e feiras também, em sua maioria, possuem sede no Sul ou Sudeste.

Não é literatura nacional se não tiver inclusão de cor, gênero e região.

Falta de apoio

São poucos os autores que vivem exclusivamente de royalties de suas obras. A maioria possui outras profissões, ou trabalha no mercado serviços relacionados (revisões, leituras críticas, edições e por aí vai). Há aqueles que possuem grande volume de vendas todos os anos, mesmo fora do círculo acadêmico ou da chamada "alta literatura", como Raphael Montes, Victor Bonini, Cláudia Lemes e Marcos DeBrito, mas estes não fogem da classificação citada anteriormente: brancos, sulistas e de classe média-alta.

Resta ao autor independente menor contar com o apoio de seus amigos, parentes e leitores.

Em A seletividade dos apoiadores, falei sobre os problemas em artistas fora do grande círculo conseguirem notoriedade quando até mesmo aqueles mais próximos, ou os chamados "apoiadores" não valorizarem a produção independente.

Existem diversos motivos/desculpas/discursos acerca do porque não apoiar autores nacionais independentes:

  • Tem quem ache que a literatura nacional resume-se aos clássicos, que são leituras obrigatórias nos ensinos fundamentais e médio;
  • Tem quem alegue falta de tempo para ler;
  • Tem quem diga que é difícil ler;
  • Tem quem fale que a literatura nacional não possui a qualidade da estrangeira;
  • Tem quem ache livros desnecessários ou caros demais.

Novamente, vamos por partes:

  • Todo povo passa por transformações em sua narrativa. Evolução é mudança de estado, mas nem sempre para um nível superior. Obviamente que os clássicos possuem seu peso na construção do imaginário internacional sobre o brasileiro e embasem a alta literatura nacional, mas os brasileiros não se tornaram inaptos de escrever grandes obras com a morte de Machado de Assis ou Jorge Amado. Por anos as crônicas foram a principal forma de literatura no Brasil, fossem em jornais, revistas ou livros — e este é só um exemplo. Então, não: nem só de clássicos sobrevive uma literatura;
  • Ninguém tem tempo pra muita coisa. As pessoas trabalham oito horas por dia, passam mais algumas no transporte público, estudam, cuidam dos filhos, comem, dormem, fodem, etc. Mas nenhum livro vêm com a obrigatoriedade de ser lido oito horas por dia. Livros fazem parte dos momentos de lazer — que, por si só, são um espaço em aberto na agenda;
  • Sim e não. Há livros realmente prosaicos (não tem como ler Os Sertões sem se perder, vez ou outra, em termos totalmente anacrônicos para alguém em 2019). Mas, assim como o idioma falado se adaptou nos últimos anos, a escrita e a narrativa ganharam novos formatos e possibilidades, sejam mais restritos ou acessíveis;
  • Aqui a gente sai no soco. Nelson Rodrigues já disse sobre nossa "síndrome de vira-lata", em que enaltecemos o "de fora" e relegamos o "de casa". O grande problema desse pensamento é desconsiderar as diferenças culturais, sociais e históricas entre as sociedades e achar que a literatura deve seguir um modus operandi para todas as nações. O fato de alguém achar Tolkien, um inglês católico do século passado, o ícone máximo da literatura fantástica não deve ser regra para que um brasileiro do interior do Maranhão de 2019 faça uma obra de fantasia do mesmo modo que o dito cujo. A graça da literatura está, justamente, em suas diferenças culturas e pluralidade em visões de realidade. Koushun Takami e Haruki Murakami são autores e japoneses, mas suas obras não possuem nada de semelhante além da nacionalidade dos autores. E o mesmo ocorre com Victor Hugo e Júlio Verne, Úrsula Le Guin e Suzanne Collins ou Rubem Braga e Rubem Fonseca.
  • A arte segue uma tendência também adotada pela publicidade: ela resolve problemas que ela mesma cria. Uma marca não sabe que precisa de alguém que entenda como convencer pessoas a comprar seu sabão em pó até que outra pessoa, com as mesmas qualidades, faça a concorrente vender mais; a mesma coisa com alguém que não sabe que precisa de música até ir numa orquestra. Livros soam desnecessários porque vivemos em um tempo em que tudo precisa ser imediato e extremamente relevante: se não me enche a barriga, paga minhas contas ou aumenta minha relevância social, não me serve. Este é um problema que o mercado editorial, a educação pública e os grandes autores nacionais ainda não conseguiram resolver. Com relação ao valor: eu falei em "Viver de arte é uma #%@*&" o porquê desse argumento ser inválido.

O autor nacional do mercado independente é desacreditado desde antes de produzir. Ele é automaticamente ruim, chato e irrelevante. Ele não é estrangeiro, não possui sobrenome esquisito, não figura na lista dos best-sellers do The New York Times, não possui adaptações cinematográficas de suas obras nas salas de cinema do mundo inteiro, não dá palestras caras em hotéis seis estrelas para velhos brancos e ricos. Se ele é nordestino, duvidam de sua alfabetização; se é preto, de que não seja uma fraude; se é mulher, de sua qualidade; se é LGBT, do discurso de sua obra.

Por isso as pessoas próximas aos escritores, sejam iniciantes ou já com alguma bagagem no mercado independente, acham que é desnecessário que seu "amigo escritor" tenha seu apoio em uma campanha de Catarse, ou que ele deva cobrar por sua obra. As mesmas pessoas que não aceitariam trabalhar em troca de um copo d'água e um abraço quentinho, mas que acham que o autor pode, sim, sobreviver com isso.

Por isso existe centralização na produção literária brasileira: as mesmas pessoas escrevendo as mesmas obras, mantendo o mesmo discurso e ocupando, cada vez mais, espaços que precisam ser ocupados por quem lhe é de direito. E levando o crédito por uma literatura que, até, é nacional — mas nem tanto.

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Alan de Sá
Explico melhor escrevendo

Journalist, writer, copywriter and co-creator of sertãopunk.