O Brasil é uma startup
Esse é um texto repleto de ironias. Se precisar de alguma explicação sobre seu conteúdo, leia a primeira frase novamente.
Um cara branco, europeu e rico identificou uma oportunidade de negócio em uma área ainda não explorada. Antes de começar a operação ele enviou uma pessoa de insights fazer um scouting no mercado. No primeiro momento identificaram um produto com valor agregado e que casaria bem com um target mais qualificado, premium.
Só tinha um problema: o pequeno produtor.
Diferentemente do cara europeu, os pequenos produtores não se importavam tanto assim com essa matéria prima. O negócio deles era mais voltado para sustentabilidade, algo que claramente não agradava ao branco. Então, como forma de eliminar a concorrência, o sujeito fechou parceria com grupos focados em cavar oportunidades. Ou, milícias armadas.
O negócio se expandiu à medida que o pequeno produtor ia abandonando o mercado e, em muitos casos, era obrigado a trabalhar para a megacorporação que nascia. Um apurado setor de human resources ficou responsável pelo recrutamento e seleção de mão de obra qualificada à baixo custo.
Deu certo. Com diversos setores de negócio estabelecidos, a sede da empresa na Europa lucrava à peso de ouro enquanto outros conglomerados empresariais corriam por fora.
Até que surgiu a concorrência, com um produto melhor e a preços acessíveis. Quando começou a doer no bolso, a companhia se viu obrigada a vender papéis na bolsa pra captar capital. Curiosamente, uma empresa vizinha e com negócio semelhante se tornou a maior acionista. Não demorou para que o novo partner passasse a usar a operação recém adquirida em suas próprias frentes de negócio e, bem, não se podia fazer muito. Afinal de contas, o board agora era deles.
Em uma dessas investidas, foi-se criada o que a empresa chama de "uma campanha negativa por parte de quem não aceita perder" e, num movimento inédito, a sede da empresa deixou a Europa e foi transferida, justamente, para um dos antigos assentamentos dos pequenos produtores expulsos de seus negócios. Tal ação fez a comunidade internacional se questionar: teria a favela vencido?
Não foi bem o caso.
Depois de alguns anos vendo os funcionários mais baixos no organograma atuando de perto, o sentimento por parte do branco era de revolta. Onde foram parar os milhões que investimos em capacitação profissional, equipamentos e design thinking? Onde foram parar meus talent hunters? Desiludido e prestes a falir, nosso herói pensou em voltar para casa, vender o restante de suas ações e viver tranquilamente.
Mas então seu filho, que durante anos não havia feito nada relevante, surgiu. O jovem promissor no mundo dos negócios possuía assuntos pendentes e não poderia simplesmente deixar sua coleção de hoverboard para voltar à Europa simplesmente porque o pai queria deixar tudo para trás.
Foi então que ele teve uma grande ideia: montar uma startup. Usando recursos de um fundo de investimento capitaneado por ninguém menos que o próprio pai, nosso jovem investidor assumiu a operação local, se tornou CEO da nova empresa, pôs o pai como chairman e se vendeu ao mundo dos negócios como uma nova solução criativa e disruptiva. A campanha de rebranding foi muito bem executada, engajando com o stakeholder e emplacando um jingle que está na cabeça das pessoas desde então.
Mas a vida, meus amigos, a vida de um homem de negócios é uma caixinha de surpresas. Não tardou até que nosso jovem empreendedor enfrentasse sua primeira grande crise: a trabalhista. Os debates sobre o sucateamento da mão de obra cresciam ao redor do mundo e se esperava alguma posição da startup, afinal de contas, a maioria do quadro de funcionários não possuía direitos básicos. Tentou-se, claro, uma estratégia de always on, trazendo uma mensagem de parceria entre funcionário e empresa. A assinatura "Você faz parte de nossa cultura", porém, não pegou. Aliás: pegou, mas negativamente.
Com todos os esforços de mídia e conteúdo não surtindo efeito, a jovem empresa precisou mudar sua política de contratações e, pouco tempo depois, veio uma completa reformulação no board.
A estrutura centralizada deu espaço a co-participação nas decisões globais da companhia. Ou, era o que se esperava.
Não tardou para que o novo c-level queimasse todos os pedidos de indenização trabalhista abertos pelos profissionais prejudicados na transição de lideranças e passasse a negativar suas imagens em outras frentes de trabalho, tornando o mercado cada vez mais excludente.
A verdade é que esse modelo de negócios nunca deu muito certo internamente.
Todo mundo ali sabia da cultura arraigada em conservadorismo e velhas práticas de mercado que impregnavam o DNA da companhia e, vez ou outra, aconteciam disputas pelo poder, quase sempre depois de alguma visita de empresários americanos dispostos a "ajudar" a startup. Não se sabe porque, mas eles nunca gostaram de fazer PR sobre isso.
Chegamos, então, ao presente. A startup passa por um momento delicado internamente, com baixa captação de capital, poucos funcionários e um CEO maluco.
O próximo conselho deliberativo está para acontecer e a chapa da atual gestão já cria inverdades sobre o processo eleitoral desenvolvido internamente — e que elegeu a atual gestão. O mercado internacional observa atentamente os movimentos: uns, para saber se devem ou não vender suas ações; outros, doidos para comprar.
O target mudou e a forma de comunicação também. A startup investiu pesado em mídias sociais e contratou uma empresa especializada em comunicação via Whatsapp, tornando essa a ferramenta preferida para avisar o mercado dos novos momentos e divulgação de notícias, fossem elas verdadeiras ou não.
E, falando em propaganda, a start up acabou de anunciar seu novo ambassador, super conectado com a cultura da empresa e alinhado com as políticas do board: a milícia armada. Afinal de contas, é um personagem que casa bem com todas as frentes de negócio da startup — até ̶g̶r̶i̶l̶a̶g̶e̶m̶ agricultura.
Enquanto isso, a startup decide trazer uma nova política de gestão de pessoas, mas que, na prática, não é tão nova assim: profissionais a custo baixo e pouco capacitados inflando a folha salarial, sem direitos trabalhistas e seguridade. O mesmo tipo de estratégia que não deu certo no passado, mas nada que um bom rebranding não resolva (não resolve tanto quanto mudar o CEO ou diminuir os salários do board).
A startup alega prejuízos financeiros por conta da pandemia global. Faz lá o seu sentido. O que não faz sentido na cabeça dos funcionários é como quase seiscentas mil pessoas foram demitidas sumariamente numa tentativa de equilibrar o caixa, segundo o board. Especialistas estudam se o melhor não seria abrir falência, trocar toda a estrutura de negócio e começar do zero. Mas, dado o histórico da companhia…