O que aprendi escrevendo sobre palhaços?

Alan de Sá
Explico melhor escrevendo
6 min readJan 28, 2020
Essa foi a única imagem livre de direitos autorais e sem necessidade de atribuições — e que não me causavam mau-estar — que encontrei pesquisando "nariz vermelho".

O rap, enquanto movimento majoritariamente masculino, possui uma dificuldade intrínseca em suas letras de falar sobre medos. Ao menos, dando este nome aos eventos: medo. Desde Grandmaster Flash e o estabelecimento das bases do hip hop, passando pela expansão das sonoridades e versatilidade com Afrika Bambaataa, as questões policiais de N.W.A, o gangsta rap do fim dos anos noventa até movimentos mais recentes, como o trap, pouco se fala do medo.

O que existe (e isso você pode conferir no texto O terror de um homem negro, aqui no Medium) são os terrores reais: ser morto pela polícia, não conseguir outra alternativa na vida a não ser a vida bandida, perder entes queridos, a traição de um parceiro, entre tantos temas cotidianos.

Com o tempo, isso mudou. Tanto na forma de se falar dos medos quanto em suas resoluções, principalmente no nosso rap. Se, em 1993, Racionais Mc's cantava na faixa Pânico na zona sul os medos de se estar na região mais perigosa de São Paulo entre os anos 80 e 90, em Vida Loka pt 2., já em 2002, ele acredita que o sonho de todo preto é ter um terreno no mato e uma vida tranquila.

Hoje, nomes como o do recifense Luiz Lins, em faixas como Eu tô bem, e Menestrel, na marcante Relicário, falam de solidão, depressão, ansiedade e o sentimento de isolamento, mesmo em um mundo conectado pela internet. Os medos cotidianos continuam lá, mas outros, também, ganharam vez.

Passei minha primeira infância em São Paulo. Até os 9 anos de idade, mais ou menos. Ainda guardo muitas lembranças desse período, mesmo com 1/4 de século na conta. E, por passar a infância em uma cidade monstruosamente grande, a gente se acostuma aos acessos que o capitalismo traz aos centros urbanos. Isso inclui Mc Donald's.

Não era sempre, obviamente. Até o momento em que eu e minha família voltamos pra Bahia (22 de dezembro de 2003), o boom da construção civil que veio com o governo Lula ainda não havia acontecido. E, com isso, a quantidade de trabalhos que meu pai conseguia como pintor não era tão alta (nem a grana). Minha mãe ainda era costureira, nessa época. Me deixava às 4:30h da manhã na casa de uma vizinha, Tia Júlia, e ia pro trabalho. O que entrava de grana dava pras contas e, quando muito, fazer a caixinha pra voltar pra Bahia e terminar a nossa casa.

Mas, às vezes, dava pro Mc Lanche Feliz. E, lá por volta de 2003, o Mc Donald's lançou um CD de músicas do Ronald Mc Donald's, o palhaço ex-mascote da marca. Pouca gente tinha CD-Player em casa, essa época. Nós, por exemplo, não tínhamos — apenas uma vitrola e duas caixas de papelão lotadas de vinis. Mas nada que pudesse tocar um CD. Ainda assim, ganhei um desses CDs na promoção. Foi com a gente pra Bahia.

Quando chegamos, meu tio policial possuía um microsystem com CD-Player. Foi a primeira vez que toquei meu CD do Mc Donald's e escutei o Rock do Ronald na vida.

Por que disso tudo?

Durante muito tempo, tive uma infância comum, com relação a atividades circenses. Quando um circo parava na minha favela, eu ia. Não tinha problemas com Patati e Patatá. Nem com o Coringa. Eu não tinha fobia de palhaços.

Nem quando comecei a fazer aulas de artes circenses.

Foi depois de mais um ano de aula, quando já estava ficando bom no malabarismo e "ok" no monociclo, que tive a primeira aula de palhaçaria. Seria parte de um festival de teatro infantil que acontece todos os anos na minha cidade. O professor, palhaço profissional, ensinaria técnicas de tapas falsos, puxões de cabelo cenográficos, interações com a platéia, esse tipo de coisa. E maquiagem, obviamente.

Só havia um porém: nós teríamos que nos maquiar.

Fiz a minha própria maquiagem, com aquelas bases brancas, pincéis, cores, etc. Não lembro como era a aparência ao final; eu passei mal. Fiquei um bom tempo pensando no que poderia ter causado aquela falta de ar momentânea, frio no peito, suor e uma vontade de arrancar meu próprio rosto com as unhas. Talvez fosse somente um desconforto. Talvez fosse paranóia. Paranóia, sim, isso. Explicaria bem.

E explicou. Até isso acontecer de novo. Mais vezes. Com outras figuras de palhaços. Qualquer palhaço, fosse ele o Robin Williams em Patch Adams ou o Krusty, dos Simpsons. Tive que chegar a consensos mentais sozinho sobre o que via ou não como palhaço. Consegui desmistificar Krusty e o Coringa (ainda que não consiga o mesmo com esse, do Joaquim Phoenix).

Sempre foi bem complicado me ver livre da figura do palhaço. Primeiro que, socialmente, palhaço não mete medo em ninguém. E segundo que, quando mete, ninguém leva à sério. Medo de palhaço é coisa de criança que foi no circo pela primeira vez e ficou incomodada com uma esguichada de flor na cara, não de um baiano cascudo de vinte e poucos anos. Qual o problema de colocar seu amigo com fobia de palhaço pra assistir It no cinema? Ele pode ficar um mês sem conseguir direito, ter alucinações, esse tipo de coisa. Mas é normal, não é?

Não.

É extremamente desagradável ser colocado diante de seus medos como forma de entretenimento. Por melhores que sejam as intenções (ainda que não ache que alguém que faça isso, com qualquer que seja a fobia ou pessoa, tenha lá boas intenções). Imagine alguém com medo de altura sendo jogado de um avião pra saltar de para-quedas. Ou uma pessoa com claustrofobia trancada em um cubículo. É o mesmo sentimento.

Ainda assim, ano passado, talvez tenha vivido meu maior momento de coragem diante da courlofobia (o nome que se dá à fobia de palhaços): a Horror Expo, em São Paulo. Foi inocência minha achar que passaria horas em um evento gigante totalmente focado em terror sem me deparar com nenhum palhaço. Como disse Luana Piovani ao ser assaltada em Portugal, "dei mole, muito mirim, muito amador". Foram longas noites sem dormir. Longas. Meses. Isso sem contar as que já não o conseguia fazer, por ter as timelines das redes sociais, notícias de sites de entretenimento, out of home espalhados por toda São Paulo e outros impactos sobre os filmes de It e Coringa.

Talvez isso tenha alavancado ainda mais minha insônia. Na terapia, minha psicóloga disse que, talvez, o meu medo de palhaços esteja atrelado ao fato de que estas pessoas escondem quem realmente são em uma figura aparentemente inofensiva. Que a falta de verdade na palhaçaria seja um estopim pra outros medos, os cotidianos.

Em setembro do ano passado, tomei coragem pra escrever sobre palhaços pela primeira vez. Obviamente que não o fiz são (se listasse a quantidade de coisas que bebi/usei pra isso, o PROERD ficaria abismado). Um conto, Abrakadabra, que está em processo de capa e revisão. Foi complicado reler. E fazer as anotações da leitura crítica. E pensar em como queria que a capa remetesse a temática sem que eu passasse mal toda vez que olhasse pra meu próprio conto. Mas, talvez, nada disso tenha sido tão complexo quanto explicar, dentro de uma narrativa, o que é pra mim essa condição.

O que sobra depois de levantar a lona?

Nunca fui do time que gosta de aprender com erros ou experiências traumáticas. Já basta a pobreza, não se precisa de mais do que isso. Mas, há o que se tirar disso tudo.

Não aprendi a não ter medo de palhaços. Ainda tremo quando vejo, alucino ao pensar demais, e, não, não sei se o faria novamente (escrever sobre palhaços, no caso). Mas consigo ver uma evolução. Nas reações físicas (já não suo tanto quanto antes ou perco o ar, ao menos quando isso acontece de forma não-presencial) mas na mental, também. Se, por um lado, escolher a literatura pra contar esse "medo não-cotidiano" é oferecer uma forma de experiência imersiva ao meu ponto de vista do problema pros outros, por outro, isso volta pra mim; ação e reação.

Talvez eu nunca tivesse pensado o quanto esse rolê poderia render algo, ou o quanto minha própria mente pode ser mais assustadora do que imaginava. Que, assim como o medo em ser abordado pela polícia ou de não chegar em casa, isso não some quando não é aparente e, portanto, deve ser tratado com a mesma responsabilidade.

Mas, principalmente: ainda devem ter outros medos escondidos em algum lugar da minha mente. E eu tenho que conhecer e entender cada um deles.

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Alan de Sá
Explico melhor escrevendo

Journalist, writer, copywriter and co-creator of sertãopunk.