O terror de um homem negro

Alan de Sá
Explico melhor escrevendo
5 min readSep 2, 2019

Minha mãe é preta. E, de várias frases marcantes dela ao longo dos meus vinte e quatro anos nenhuma me marcou tanto quanto "não tenha medo de quem tá morto, tenha medo de quem tá vivo".

Eu, assim como outras pessoas, tenho medos comuns. Altura, um certo receio do escuro e, sobretudo, palhaços. Não sei quando, exatamente, isto começou. Eu fiz parte de um projeto social bancado pelo governo do estado da Bahia que incluía aulas de teatro, música e circo. Aprendi algumas coisas de malabarismo, acrobacia, arame e outras atividades circenses. E, uma das vezes, tivemos uma oficina de palhaços.

Nesse dia, todo mundo se fantasiou. A gente se maquiou como palhaços e, desde então, percebi que tinha medo da figura. Ao longo dos anos fui passando por um processo de desconstrução mental da figura em minha mente. Consegui fazer isso com o Coringa e com Krusty, dos Simpsons. E só. Isso até semana passada, quando assisti o segundo trailer do filme do vilão do Batman, que, agora, será vivido por Joaquin Phoenix. Não sei se consigo desassociar a imagem do personagem a um palhaço.

Existe um nome pra isso: courlophobia. No dicionário, "fobia" é classificada da seguinte maneira:

fobia s.f. (1890)

1 medo exagerado <f. de altura>

2 falta de tolerância; aversão <f. de luz>

2.1 psicop estado de angústia, impossível de ser dominado, que se traduz por violenta reação de evitamento e que sobrevém de modo relativamente persistente, quando certos objetos, tipos de objeto ou situações se fazem presentes, imaginados ou mencionados [As fobias são classificadas entre as neuroses de angústia, na teoria clássica das neuroses.]

Medo exagerado. Não sei o quanto isso faz sentido, pra mim. Em uma música do último projeto de Cynthia Luz, Djonga diz a seguinte linha:

Filho de Ogum, cedi a batalha
E percebi que a coragem é o medo em frente o espelho

Se a coragem é o reflexo do nosso medo, então, para Djonga, nosso medo também está em nós. Se conseguimos ver o desassombro no assombro, logo, o segundo é vivo. E, aqui, retorno ao que minha mãe disse: medo dos vivos.

Quando decidi escrever suspense e terror, pensei nas coisas que me faziam ter medo. Estava fora de cogitação fazer algo com palhaços. Pensei em medos universais e fiz contos sobre cada um deles: morte (Rasga-Mortalha), espíritos (Tsavo), pessoas estranhas (Hannover, O Velho do Saco), a psiquê humana (Mordake), loucura (A Vila) e a sensação de abandono, desalento e esquecimento do eu (Homens sem Luz).

Mas algo ainda não se encaixava nessa matemática literária. Esses não eram os meus medos, eram os dos outros.

O sobrenatural sempre atiça medos. Faz parte do desconhecido. Grandes obras do terror se baseiam nessa premissa: Cemitério Maldito, A Coisa, O Iluminado, O Exorcista, Babadook, Caixa de Pássaros, etc. As pessoas tendem a temer aquilo que não conhecem. A grama do vizinho pode até ser mais verde, mas por quê? É nessa semente que reside a fórmula básica da escrita de terror: germinar ansiedade sobre um tema tabu e chocar psicologicamente.

Só que isso não se aplica a um recorte importante do Brasil: homens pretos e do interior do Nordeste.

A gente, que é da roça, sabe que o sobrenatural existe e que caminha lado-a-lado ao natural, o material. Quando um baiano interiorano vai em uma gira no meio do mato e vê alguém virado em uma entidade, ele sabe que o "desconhecido" está ali; quando um porco some misteriosamente e aparece em carcaça dias depois, o sertanejo nordestino sabe quem fez aquilo. Por isso não se assusta; é cotidiano.

Nas grandes cidades, dentro do mundo branco normalizado pela cultura de massa, lobisomens assustam. Pro nordestino preto e do interior, as pessoas assustam. Ele é arisco, não por ser "tabaréu" ou "matuto", mas por não saber o que esperar de alguém que nunca viu e que pode, sim, fazer algo aleatório e assustador.

Esse tipo de terror não está representado na literatura nacional de terror. Existem outras pautas que, pelo visto, parecem mais importantes. Para Raphael Montes, por exemplo, o terror está em jovens brancos de classe-média, universitários, cariocas da gema e com mentes doentias; já André Vianco vê o terror com os olhos de um adolescente que não entendeu Drácula de Bram Stoker (afinal de contas, é sobre isso que se trata Os Sete, não?); Victor Bonini diferencia-se pela capacidade em dar a personagens ruins arcos mais assustadores que a big idea de suas obras (quem já leu O Casamento sabe do que estou falando). E por aí vai.

Sinceramente, isso não me surpreende. Porque, diferentemente dos pretos do interior do Nordeste, as visões de assombro dos produtores da literatura "nacional" de terror são estrangeiras: seus ídolos são de fora, sua métrica é importada, seus sobrenomes não soam nacionais, suas personagens podem se passar por qualquer nacionalidade européia facilmente, suas tramas são grandes argumentos de um próximo filme do Shyamalan.

Por isso não me vejo referenciado na literatura nacional de terror. Ela não conversa com meus medos, não da forma que eu consiga ver e me sentir realmente completo ao ler. Ela não me toca, não me choca. O único recurso vantajoso do livro, enquanto formato de mídia — a virada de página — é totalmente ignorado e mal explorado. Ela não me assusta porque é tão superficial que parece nem existir. E, de onde eu venho, o medo é vivo.

Outro dia, no bairro em que moro em São Paulo, faltou luz. Apagões são comuns na periferia em que cresci na Bahia. Faltava energia elétrica por problemas de distribuição, queda nos níveis d'água em alguma hidrelétrica ou algum acidente num dos postes com transformadores. Mas, quando faltou luz, a lembrança que tive não foi nenhuma dessas.

Sempre que havia um apagão, todos se recolhiam. As casas eram como pequenas fortalezas; intransponíveis, até que se prove o contrário. Somente em uma situação as luzes se apagavam e pessoas transitavam nas ruas escuras: quando o apagão era disfarçado no véu do medo imposto pela criminalidade.

Outro dia, no bairro em que moro em São Paulo, faltou luz. Haviam pessoas nas ruas. Isso, sim, me deu medo.

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Alan de Sá
Explico melhor escrevendo

Journalist, writer, copywriter and co-creator of sertãopunk.