One Piece e a zona cinza das liberdades.

Alan de Sá
Explico melhor escrevendo
10 min readJul 3, 2021

Em 2013, no aniversário de 7 anos da publicação impressa da revista Rolling Stones no Brasil, a revista fez uma matéria especial, que foi capa da edição, sobre o Racionais MC's. Intitulada "Os quatro pretos mais perigosos do Brasil", a reportagem aprofunda em cada um dos membros do maior grupo de rap da história do país — Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay — , em suas vivências, carreiras solo, dores e vontades.

Da esquerda para a direita: Edi Rock, Mano Brown, Ice Blue e KL Jay. Créditos na imagem.

Assim como naquela época, e também décadas antes dela, o rap segue sendo uma das formas de expressão e mobilização social mais viscerais que a democracia trouxe. Independentemente dos desdobramentos que o movimento hip hop teve nos últimos anos, seja com trap ou twerk, ou qualquer outra justificativa para a entrada do movimento no mainstream, a capacidade de desvelar a realidade do movimento hip hop se manteve durante todo esse tempo.

No Brasil, é inegável a força que Racionais MC's teve e tem na popularização da cultura e transmissão de mensagem nos últimos trinta anos. Claro, o rap não foi calcado somente por eles. Falar do rap brasileiro e não pensar em Sabotage, RZO, MV Bill, Thaide, Criolo, Visão da Rua, Facção Central, Ndee Naldinho e tantos outros soa amador e mal caráter, mas, se existe um ponto de convergência dentro do rap nacional foi a forma que Mano Brown e companhia abriram caminho para todas as gerações.

Dentro do espectro de cores social, pretos e brancos possuem espaços bem delimitados. Uma foto, da divisão entre Morumbi (bairro nobre de São Paulo) e Paraisópolis (uma das maiores periferias da cidade), exemplifica bem isso.

À esquerda, Paraisópolis; à direita, um condomínio no Morumbi.

O rap, que nasce do preto, invade o mainstream branco falando sobre todas as questões sócio-históricas que levam os habitantes de um lado da rua viverem em média 10 anos a menos do que seus vizinhos e cria uma zona cinza que atrai olhares e estudos sobre o papel do povo nas revoluções — e se toda liberdade é igual.

Eu sou cadela de One Piece. Acompanho essa história há mais de dez anos e toda semana me surpreendo com o quanto o mangá consegue se manter encantador por tantos anos. E se todos os textos do Medium eu começo contextualizando com o rap, é só pra manter o estereótipo de "todos os negros gostam de rap", porque poderia bem fazer o mesmo com One Piece.

Se você nunca assistiu ou leu o anime, aqui vai um resumo do resumo do resumo: um adolescente retardado, que comeu uma fruta mágica que o tornou o homem borracha, chamado Monkey D. Luffy, sonha em se tornar o rei dos piratas numa era em que todo mundo sonha o mesmo. Depois de ser salvo por um bando comandado por Shanks, o Ruivo, Luffy passa a infância e adolescência treinando, até deixar sua cidade aos 17 anos, indo viver a aventura em busca de amigos e do One Piece, o maior tesouro de todos.

Olhando de forma mais analítica para as questões de estrutura narrativa no mangá, é fácil perceber uma série de problemas. A obra tem repetição de conceitos, má distribuição de tempo de tela pros personagens, uso de recursos extremamente perigosos (alô deus ex machina) e outros. A lista é grande, condiz com a obra.

Pra mim, o que faz tudo isso ser esquecido por grande parte da fandom é a forma completamente atrativa e bem editada que Eichiiro Oda (autor da obra), junto com os editores da Shonen Jump, de contar por 27 anos a saga do pirata que estica. Foi essa responsabilidade que fez de One Piece um dos primeiros animes a quebrar padrões de shonen impostos por décadas na indústria japonesa.

E a grande responsável por isso é a liberdade. Um conceito que parece tão abstrato e imaterial em nossa história civilizada que chega a ser engraçado. Na grande jornada que é o navio dos Chapéus de Palha para o maior tesouro de todos, o nome do destino final é Laught Tale. A terra da gargalhada. A partir do momento que One Piece se propôs a analogar (e vão engolindo o neologismo) diversas vezes diferentes a liberdade sem perder a proposta de ser um mangá de humor, ela deu o passo essencial para se tornar uma ótima história.

Princípio da incerteza de Heisenberg

One Piece e Breaking Bad partem do mesmo princípio: o não determinismo. Eu não vou comparar as obras, muito pelo contrário. Mas o que quero elucidar é que tanto Luffy quanto Walter White iniciam seus conflitos a partir do momento que rejeitaram o que era determinado. O primeiro passo para as duas histórias é um "não"; pra uma vida infeliz e entregue a morte em troca de serem livres.

Werner Heisenberg (a inspiração para o pseudônimo de Walter em Breaking Bad) é um dos físicos mais importantes do século XX por levantar uma dúvida: a nível quântico, quem garante que a gente está certo sobre a posição e movimento de uma partícula? Mesmo que feito de forma mais técnica, esse princípio, quando aplicado às ciências sociais, gera uma problemática também interessante: a nível social, quem garante que a gente está determinado a seguir um determinado caminho ou estar em posições imaginadas?

Esse questionamento apresenta a existência de uma estrutura com lógica matemática apontando onde as pessoas, indiferentemente, devem ou deveriam estar. Pode ser mão invisível do mercado, capitalismo, cinco famílias mais poderosas, Illuminatis ou o que for. Se pra mim, real, já existe uma natural dificuldade pra chegar ao resultado, imagine em um universo ficcional, com suas próprias regras e regências.

Liberdade do eu

Luffy cresceu em uma vila pequena, num mar considerado fraco e sem importância, vivendo sem luxos e convivendo com homens que podem fazer o que quiser: os piratas. Mesmo sendo neto do vice-almirante da Marinha, não foi a vontade de seu avô de que ele fosse marinheiro que ele absorveu, mas ver o que homens como Shanks faziam: riam, comiam, bebiam, lutavam e viajavam quando quisesse, para onde quisesse, sem dever nada a ninguém. Na imaginação fértil de uma criança, isso se traduziu em ser um pirata e no One Piece.

Querer ser você mesmo não é novidade nos animes. Naruto tem um dilema semelhante no início: quero alcançar algo que ninguém como eu jamais conseguiu sendo eu mesmo. Quando Luffy viu a diferença que existia entre meros bandidos da montanha, que sequer tinham coragem de deixar o próprio lugar para serem bandidos, e piratas de verdade, a escolha fica clara: somente alguém disposto a sair de seu lugar pode ir atrás de tais coisas.

Liberdade de outrem

O primeiro episódio do anime de One Piece é diferente do mangá. No anime, acompanhamos um barril rolando em um navio carregando um protagonista idiota; no mangá, vemos um Luffy criança provar que é capaz de qualquer coisa.

Primeira página do mangá One Piece.

Essa diferença nas versões mostram dois pontos principais de quem é o protagonista dessa história: ele faz o que quer e é engraçado. Justamente essas características que o levam a simplesmente libertar pessoas em todos os lugares que passa. Afinal de contas, porque não levar o máximo de pessoas nessa aventura de ser livre?

Todos os companheiros de Luffy no bando passaram por algum momento de privação não só da liberdade de ir e vir, mas também de individualidades. Seja Zoro, o primeiro companheiro, preso pela Marinha e condenado à morte ou Brooky, que passou décadas preso em um corpo decomposto, solitário num navio fantasma buscando apenas uma companhia.

Liberdade do povo

O aspecto político na obra é o ponto-chave do conflito central que une todo o worldbuilding. Não existe One Piece sem governo e revoluções. Em Alabasta, um dos arcos mais aclamados pelos fãs, acompanhamos o reino saqueado por uma gangue que colocou a população contra o Estado. Ainda que numa monarquia, o rei Cobra Nefertari mostra sensatez além das capacidades de muitos dos reis da nossa história.

Além de estimular ao máximo o contato de Vivi Nefertari, sua filha e princesa, com o povo, Cobra jamais deslegitimizou a revolta de Koda e seus companheiros, que acreditavam no discurso mentiroso propagado por Crocodile, chefe da gangue Barock Works mesmo que Cobra e o leitor soubessem da verdade.

Koda, personagem de One Piece, comandando os rebeldes contra as forças do reino de Alabasta.

Da mesma forma, em Dressrosa, Donquixote Donflamingo usurpou o governo, reprimiu rebeldes de forma vil e instalou um sistema refinado de corrupção, tráfego de armas e drogas, enquanto a população vivia no falso paraíso. Mas quando Luffy e seus companheiros desarticulam o esquema é que a população recebe a própria liberdade. Mesmo que levassem décadas para reconstruir tudo do zero, agora seriam eles a fazer isso.

Liberdade através da repressão

Curiosamente, os seres mais livres no universo do anime são a elite. Os nobres mundiais (Tenryuubitos, 天竜人) comandam toda a cadeia governamental no mundo de One Piece. São descendentes dos reinos que fundaram o governo mundial, vivem isolados do restante da população e se recusam a sequer respirar o mesmo ar que os outros. Fazem absolutamente tudo o que querem, podendo matar, roubar, estuprar e escravizar qualquer um sem nada ou ninguém que os impeça. Pelo contrário: qualquer sinal de desobediência a um nobre mundial é retaliado com força máxima pela Marinha.

Foi assim que Luffy cumprimentou o primeiro tenryuubito que encontrou.

Eichiiro Oda soa caricato ao criar a elite da sua obra, mas, por mais caricata que ela seja, não se difere em nada da nossa. Entre Bezos e um nobre mundial existe menos distanciamento social do que manifestação bolsonarista na Paulista domingo de tarde.

Liberdade ainda que tardia

Impossível falar do tema e da obra sem citar o Exército Revolucionário. Desde o momento que ele é citado na obra, as coisas mudam de figura. Durante todo o primeiro arco de One Piece acompanhamos Luffy, de ilha em ilha, recrutando novos membros, fazendo amizades e quebrando vilões na porrada. Mas, quando sabemos que existe um grupo paramilitar armado, treinado, poderoso, comandado por alguém que é a pessoa mais procurada do mundo (e, consequentemente, o pai de Luffy), entendemos que o governo possui, sim, preocupações quanto aos Revos (como são chamados).

Ao longo da série, arco a arco, as definições de revolução e liberdade vão se afunilando, assim como as influências do governo e do Exército Revolucionário. Mas, mais simbólico que Monkey D. Dragon, líder do grupo — e paródia de homens como Fidel, Chê e Sankara — é Belo Betty. A personagem, membro do alto escalão dos Revos, foi inspirada em Elizabeth Zane, uma das mulheres que fez história durante a Revolução Americana. Como se não bastasse, seus poderes são, literalmente, encorajar pessoas — e sua aparição é inspirada na pintura A liberdade guiando o povo, de Eugène Delacroix.

Belo Betty inspirando pessoas durante umas das ações do Exército revolucionário.
A liberdade guiando o povo, de Eugène Delacroix.

Antônimo de liberdade

Já disse anteriormente e, agora, novamente: em One Piece, esses conceitos são apresentados de forma caricata. Afinal de contas, é uma obra shonen, para adolescentes entre 13 e 17 anos. Algumas coisas precisam serem mostradas de um jeito mais palatável. Nada, porém, que tire o brilho e/ou importância de dois momentos relevantes para a história, quando acontecem.

No arco mais politizado até então, Eneis Lobby, conhecemos um grupo de estudiosos que busca desvendar o segredo de um período da história do mundo do mangá que foi apagado dos registros: o Século Perdido. Ao longo dos anos fomos apresentados a mais coisas sobre, porém, nada muito concreto foi revelado até agora. Mas, em Eneis Lobby, nos deparamos com o extremo de um governo global e totalitário completamente empenhado em manter algo que o desagrada profundamente às escondidas.

A aniquilação de Ohara (pensei em usar "genocídio", mas acredito que essa palavra daria um outro tom ao acontecido) pôs fim a uma ilha inteira focada em se aprofundar academicamente. Em determinado momento, os sábios acharam que poderiam conversar com o governo. Este foi o resultado.

Ohara após o Buster Call, tática de extermínio em massa do governo e Marinha em One Piece.

Ohara, assim quase todos os seus habitantes, foi exterminada e esquecida pelo governo. Quem sobreviveu foi caçado como procurado de altíssima periculosidade. Não houve resistência armada ou revolta. Apenas um país de pessoas que buscavam entender mais sobre elas mesmas.

Já o segundo momento é mais adiante na história, na Ilha dos Homens Peixe. Anteriormente, vimos como os homens tratam aqueles quem julgam como inferiores. Nesse arco, porém, temos um aprofundamento maior nas questões raciais e dois personagens — Fisher Tiger e Rainha Otohime — que expõem as opiniões de Malcom X e Martin Luther King acerca do que vivem. Diferentemente de X-Mens de Stan Lee, essa dualidade não é posta em vias de certo ou errado; pontos para Eichiiro Oda.

Fisher Tiger se tornou um pirata procurado depois de liderar escravizados à revolta conflituosa e os libertar, criando uma lenda muito maior que ele em torno de seu nome. Já Otohime, mesmo morrendo pelas mãos de um humano, sensibilizou para sempre o coração de um nobre mundial ao oferecer um discurso centrado e certeiro sobre antirracismo.

Fisher Tiger e seus Piratas do Sol.
Otohime acolhendo um nobre mundial.

A zona cinza

Esse texto já está maior do que achei que fosse, mas existem diversos assuntos acerca de sociedade e anime que podemos tratar — e que vou trazer em outras oportunidades. Sinto que ainda existe muito sobre One Piece a ser dito (destruição do meio ambiente, ciência militarizada como arma de repressão e outras questões que a história traz).

O que sobra de 27 anos ininterruptos de publicação do mangá é a zona cinza. Das revoluções às liberdades; das lutas e seus lutadores. Nesse sentido, One Piece não se diferencia tanto da narrativa pregada no rap.

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Alan de Sá
Explico melhor escrevendo

Journalist, writer, copywriter and co-creator of sertãopunk.