Quando percebi que minha escrita é uma merda?

Alan de Sá
Explico melhor escrevendo
10 min readNov 11, 2019
Dan Brown, autor de "O código Da Vinci" e "O símbolo perdido".

Quando Baco Exu do Blues surgiu na cena nacional do rap em 2016, com Sulicídio, ele não era conhecido. Ninguém o considerava um gênio do rap, pensava nele ganhando o "álbum do ano" da Rolling Stones ou com curta-metragem premiado em Cannes.

Muito pelo contrário. As rimas que mais marcaram o rapper, que é meu conterrâneo, na música foram, justamente, as mais problemáticas da canção: uma transfóbica e a outra em dizia "mandar umas fãs soropositivo" pro camarim dos rappers do eixo Rio-São Paulo, criticados no verso de Diomedes Chinaski.

Nesta época, Baco não era agenciado por Paula Lavigne, ex-esposa de Caetano Veloso, não compunha letras em que rimava Arthur Rimbaud e Canto de Ossanha no mesmo verso e não era megalomaníaco. Ele era só mais um rapper baiano que tentava ganhar espaço na cena. Haviam uma série de problemas em sua musicalidade: a complexidade das lines, dicção ruim, falta de aproximação com a "vida de Dionísio" que ele tanto cantava, a distância de sua persona e a de Exu — problemas que ainda existem. Mas que viraram parte do produto "Baco": se, antes, ele fazia rimas transfóbicas, hoje, ele faz o produto na medida em que a branquitude paulistana gosta de ouvir em seus fones Beats confortavelmente acomodados nos seus apartamentos espaçosos e caros da Faria Lima e Vila Madalena.

Escritores, por via de regra, possuem um ego bastante elevado. Isso tem muito a ver com o assunto de outro texto aqui no Medium, Pra quem escrevemos o quê, em que falo dos desafios que não são superados em levar a literatura pra outros espaços menos privilegiados. Essa falta de preocupação na democratização da literatura (teremos nosso tema pro ENEM de 2020? Não sabemos ainda) faz com que os produtores da escrita se inflem de ego. Por diversos motivos:

  • Seu público é acostumado com literatura;
  • A escrita é tratada como algo além das capacidades intelectuais de pessoas comuns;
  • A educação brasileira, de nível fundamental e médio, não faz questão alguma de criar pontes entre o abismo existente na relação "autor x leitor";
  • O público leitor gosta de manter a linearidade na forma como as narrativas são apresentadas, para manter suas próprias visões de realidade.

Tudo isso cria uma bolha literária, que, com o tempo, se torna uma zona de conforto. Os autores não precisam se reinventar e criar coisas diferentes, pensar em desconstruções de narrativa e novas maneiras de chegar ao objetivo de uma história quando podem fazer a mesma coisa que sempre fizeram, manter o mesmo público e continuar contando as narrativas que constróem suas próprias visões de realidade.

Veja, por exemplo, a Jornada do Herói. A estrutura narrativa apresentada por Joseph Campbell parece imbatível por se apresentar em mitos gregos. Seja a jornada de Orfeu ao inferno, o duelo de Perseu e Medusa, os trabalhos de Herácles ou a sobrevivência de Teseu no labirinto do Minotauro, em todos os mitos mais importantes da mitologia grega, ela estará lá.

Não à toa ela aparece em algumas das histórias mais famosas. O hobbit, Harry Potter, a trilogia Batman de Christopher Nolan e até mesmo a trajetória de Jesus Cristo na Bíblia seguem essa mesma metodologia:

  • Cotidiano;
  • Chamado para a aventura;
  • Recusa;
  • Mentoria;
  • A primeira grande mudança;
  • Criação de alianças e inimizades;
  • Aproximação do desconhecido;
  • O teste final;
  • Recompensa;
  • Retorno;
  • Renascimento do protagonista;
  • Elixir.

A Jornada do Herói questiona o marasmo de um personagem e apresenta uma transformação de pensamento dele através de um desafio que somente ele pode superar. Seja por ser o escolhido (Star Wars) ou porque existe uma ameaça grandiosa demais que somente um idiota conseguiria lidar (O senhor dos anéis).

Narrativas iguais criam autores preguiçosos

Recentemente, Martin Scorcese criticou os filmes da Marvel. Em uma entrevista pra revista Empire, ele falou sobre os filmes da "casa das ideias" parecerem com parques temáticos e não são cinema como ele conheceu. Quase um mês depois, ele assinou o editorial do The New York Times, onde explicou o porque esta era sua opinião. Obviamente que não concordo com tudo o que ele disse, mas, naquilo em que pensamos semelhante, consigo traçar um paralelo com a literatura:

Para mim, para os cineastas que eu vim a amar e respeitar, para meus amigos que começaram a fazer filmes na mesma época que eu, o cinema era sobre revelação — revelação estética, emocional e espiritual. Tratava-se de personagens — a complexidade das pessoas e suas naturezas contraditórias e às vezes paradoxais, a maneira como elas podem se machucar e se amar e, de repente, ficar cara a cara. Tratava-se de enfrentar o inesperado na tela e na vida que dramatizava e interpretava, e ampliava o sentido do que era possível na forma de arte.

Fica fácil entender a opinião do Scorcese quando se vê que existe um medo, tanto da atual indústria de cinemas hollywoodiana, quanto da própria Marvel Studios, em se arriscar. Os filmes de super-heróis precisam ter um mesmo formato porque estão em um mesmo universo, não podem ser profundos demais (porque super-heróis dos quadrinhos só possuem espaço para serem profundos e menos heróicos fora do cinema), não podem possuir relacionamentos amorosos intensos (porque precisa-se pensar no quanto aquilo vá fazer sentido em todo o universo expandido), enfim. Uma série de questões criadas pra proteger a fórmula mágica do dinheiro no cinema.

Este, na verdade, é o jeito do cinema blockbuster de ganhar dinheiro: produzir cultura de massa, aos moldes do que foi dito por Theodore Adorno (1903–1969), feita com um objetivo claro: gerar lucro a grupos poderosos e criar opinião popular sobre algo. Por isso as pessoas não entendem porque Vingadores: Guerra Infinita (2018) não foi indicado ao Oscar de Melhor Filme: porque, pra Academia, ele não é cinema. Ou, melhor: aquilo não é cinema. E, de fato, não é. É produto. Como Godzilla, Transformers, Planet of the Apes e tantos outros filmes superlucrativos. A parte triste, disto, é que, no fundo, é verdade.

O cinema comercial não é menor por não competir em grandes festivais, como Cannes, Urso de Ouro ou Toronto. É menor porque não causa reflexão, não trata das complexidades que uma trama ficcional, em suma, deveria trazer e não apresenta desafios reais ao espectador.

E eu seria mentiroso se não dissesse que esse é o mesmo sentimento que tenho com a literatura ficcional brasileira.

Nunca estivemos em uma linha de crescimento contínuo da literatura ficcional nacional. Nunca. Independentemente do nicho. Tivemos poucos momentos de pico, com André Vianco, Raphael Draccon, Eduardo Spohr e, mais recentemente, Raphael Montes e Felipe Castillo, mas essa curva nunca foi exponencial. Ainda assim, conseguimos ver que existe um esforço da literatura ficcional brasileira pra encontrar o "formato perfeito", algo que agrade a todos e passe despercebido em bancas de jornais e livrarias como um livro estrangeiro — e não pelo nome que vai à capa, mas pela trama.

Esse formato ainda não existe, nem pra todos os gêneros, tão pouco pra gêneros específicos — ainda que a impressão de ler três livros diferentes de alta fantasia e ler a mesma história exista (mas não somente pela falta de "mão solta" dos escritores, mas, também, pelo uso recorrente de artifícios de roteiro semelhantes, como a Jornada do Herói).

O que existe hoje, dentro da nossa literatura, são formatos de autores para o mercado, que exige esse tipo de produto. Como o Dan Brown.

O autor estadunidense não é bom. Sei que tem quem goste dele e quem vá usar como argumento as milhões de cópias vendidas ao redor do mundo, as adaptações de sua obra pro cinema e as tretas com a Igreja Católica pra justificar que, sim, Dan Brown é bom. Mas, não. Seus livros são previsíveis, seu protagonista mais marcante não tem carisma, sua narrativa é chata e ler O Código Da Vinci, O Símbolo Perdido e Inferno é a mesma coisa — porque parecem ter sido feitos na mesma boneca, em que ele só substituiu alguns nomes de personagens, os lugares e algumas obras de arte. Até a falta de lógica no uso de referências bíblicas é semelhante. Pra não dizer que odeio toda a sua obra: gosto bastante de Anjos e Demônios e Fortaleza Digital.

Ainda assim, Dan Brown é o modelo de autor que a literatura ficcional brasileira busca: livros com pouca narrativa, enlatados, parecidos entre si, que conversem com uma classe média-alta branca e detentora do acesso a literatura, com alto poder de viralização. Qualquer coisinha além disto é adendo: dêem uma cidade do Brasil pro Dan Brown nacional e ele vira o novo representante da cultura nacional; um personagem preto — ainda que não tenha qualquer importância na trama, seja estereotipado ou mal desenvolvido — e ele será o novo esquerdomacho da literatura; um ser do folclore e eis uma nova Tupilândia; um Nordeste seco e cheio de cybercangaceiros e temos um Euclides da Cunha contemporâneo, mas sem brio, lírica ou qualquer parte do Nordeste em sua escrita.

Mas é só qualquer coisinha. Não pode fugir do mote básico do autor branco gringo. Seja bom em ser um Dan Brown e colha os louros do mercado literário; seja bom escrevendo narrativas desfocadas do produzido pelo eixo Sul-Sudeste e viva no marasmo do mercado editorial independente.

Esse tipo de autor, costumeiramente, não aceita bem as críticas. Obviamente que não críticas especializadas, porque booktubers, resenheiros e colunistas de revistas e jornais brasileiros não costumam soltar o verbo verdadeiramente sobre essas situações — afinal de contas, isso implica em queda de rendimento no fim do mês. Com exceção de Santiago Nazarian, que não deixou de expor, em dois belos textos (um na Folha, que você pode ler aqui e outro, em seu blog pessoal, que você lê aqui), sobre os problemas que os produtores da literatura ficcional brasileira teimam em dizer que não existem. Os Dan Brown brasileiros não gostam de egos feridos; são deuses de si mesmos, criadores de suas próprias teorias literárias, que não precisam ler nada além dos próprios livros porque tudo o que precisam estão em suas próprias páginas e em suas cabeças — ainda que tudo o que usam são artifícios estrangeiros absorvidos depois de toneladas de livros, filmes e séries gringas.

Em geral, são estes os autores que movimentam a cena. Porque, no fim das contas, são deles que as editoras gostam. Quando casas editoriais, como Intrínseca, Suma e Rocco pensam em investir nos autores nacionais, eles não querem correr riscos. Precisam de nomes que já se pareçam com os que elas próprias publicam. Essa é a fórmula Marvel da literatura ficcional nacional: oferecer o mesmo produto sempre, com nomes diferentes, pra criar a cultura de massa que o mercado precisa pra girar. Theodore Adorno, de novo.

E o que isso tem a ver comigo?

Depois de muito tempo, fui reler meu primeiro livro, Marani, que foi publicado pela Multifoco em 2017. Ali, eu estava em um outro momento. Não entendia tanto da Amazon, já não queria estar no Wattpad, conhecia poucas pessoas do mercado, uma série de questões. Aqui, não é o melhor lugar pra falar da minha relação com essa editora, mas, o que posso dizer é: hoje, eu não publicaria Marani.

Quando reli, percebi que haviam uma série de coisas que eu realmente aprendi a não gostar. Talvez, à época, eu não tivesse visto essas coisas por não ter passado o livro pra nenhuma leitura crítica. Ou, também, por não ter tido uma boa revisão e edição, o que diminuiu a qualidade final da obra. Mas, além disto, existem uma série de questões narrativas que me desagradam. Arcos de personagens, soluções que dei para o roteiro, escolhas, etc. Gosto bastante da história de Marani e do que ela representa, pessoalmente, para a minha trajetória dentro da escrita. Mas sinto que ela precisa de uma atualização enorme pra ficar da forma que desejo. O que já estou fazendo.

Perceber estas coisas com minha própria obra me fez perceber duas coisas: o quanto eu fui medíocre em achar que, à época, eu tinha um material pronto para ser publicado; o quanto Marani é tão parecido com qualquer livro dos Dan Browns brasileiros que citei acima.

A impressão que tive, quando reli meu próprio livro, é de que ele não tinha alma. Senti como se tivesse lido um amontoado de palavras e só. Se um robô, programado com algumas palavras-chave, tivesse que escrever a história, faria exatamente a mesma coisa. Em menos tempo. O que não é diferente do enlatado editorial que tanto odeio. As coisas que gosto de ver numa história, e que insisto pra que outros autores nordestinos também usem — oralidade, regionalismos, Brasil de verdade — não estavam lá. E o pior: em uma história com seres do folclore, num Brasil colônia, com personagem que deveriam refletir esse Brasil.

À época, minhas referências eram completamente estrangeiras. Tudo o que lia de literatura nacional eram autores consagrados. Mas as bases da minha literatura eram de fora. Fui ler uma entrevista minha, da época, para o site Próximo Parágrafo, em que falava do livro. Nela, conto das histórias da minha avó, que foram a principal inspiração pra que eu colocasse Marani no papel. E, sim, parte disso está lá. Mas, depois dessa releitura, me perguntei: porque sinto que isso não é tão real quanto gostaria que fosse?

Cheguei a uma conclusão: não existe qualquer diferença entre o material publicado de Marani e os livros dos Dan Browns brasileiros. Por mais que eu ainda fosse um autor do interior da Bahia, periférico e com uma boa ideia na cabeça. Eu estava dentro desse mundo, de usar referências estrangeiras pra escrever sobre o Brasil e achar "ok" quando não estava.

Sair do ponto Apublicar algo — e ir pro ponto B — a autocrítica — é uma trajetória difícil. Apontar o dedo pro outro e falar "seu livro é ruim" é fácil, o foda é falar que aquilo que você mesmo fez é ruim. Hoje, quero fazer Marani ser diferente do primeiro material. Corrigir as coisas que acho problemáticas, melhorar as passagens que curto, retirar aquilo que não gosto. Basicamente, fazer um processo inverso ao que Baco Exu do Blues fez com sua música ou o que o mercado literário pede: tornar um livro feito pra gente branca em um livro com a influência das histórias da minha avóe com o Brasil de verdade; o que deveria ter acontecido desde o início.

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Alan de Sá
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Journalist, writer, copywriter and co-creator of sertãopunk.