Tentar não ser racista é tão problemático quanto ser

Alan de Sá
Explico melhor escrevendo
7 min readJan 29, 2020
Green Book (2019): filme que narra a viagem do pianista Don Shirley junto ao motorista Tony Lip durante uma turnê nos Estados Unidos na década de 60. E também um caso de filme racista que se deu bem.

O rap nasceu preto, em berço e essência. Mas, assim como tudo o que nasce preto em uma sociedade em que os conceitos de certo e errado, belo e feio, lucrativo e prejuízo, etc., são brancos, não era de se esperar que o mesmo acontecesse com o movimento hip hop — e não somente o rap. Ora, o mesmo aconteceu com a astrologia, medicina, ortodontia e tantas outras invenções pretas.

Por isso, nomes como Vanilla Ice e Beastie Boys — que receberá um documentário dirigido por Spike Jonze; branco — surgiram na cena, ainda nos anos 80. Ou outros, como Eminem, Fat Joe e, mais recentemente, Lil Pump, o falecido Lil Peep, Mac Miller, Mackelmore e, no Brasil, Haikaiss, Costa Gold, Cynthia Luz, Matuê e alguns outros.

A discussão, entretanto, não é sobre a qualidade das rimas de pessoas brancas ou sua simples presença em um espaço afrocentrado, mas o quanto elas entendem que esse não é menos preto por elas estarem lá. Ou, em uma paráfrase com o, sim, racista Gilberto Freyre, um espaço "democraticamente racial". Este parece ser um dos pontos básicos para que rappers brancos sejam aceitos dentro do movimento hip hop: não falar o que não sabe, não se meter onde não é chamado e não tentar se por num lugar em que nunca esteve. Alguns entendem isso. Outros, como Fábio Brazza, nem tanto.

Faça um exercício: imagine quantos personagens de desenho animado, que não são desenhados como negros, possuem uma personalidade próxima de uma pessoa preta. Eu consigo pensar em vários, desde Dragon Ball até Looney Tunes. Ainda assim, nenhum deles foram desenhados como personagens negros. Talvez por não ser essa a proposta das animações que fazem parte, talvez pra passar um tipo de mensagem subliminar. Nunca saberei, de fato.

Claro, isso é uma suposição, algo que pensei enquanto conversava com um amigo, também negro, sobre como personagens como Piccolo e Patolino se pareciam muito mais pessoas pretas do que só alienígenas que voam ou patos estressados, respectivamente. E, ainda que, no fundo, estes não sejam personagens negros em animações clássicas, se assim o fossem, certamente seriam menos interessantes e queridos — justamente porque não estariam livres do racismo de seus países, autores e editores.

Mas o que vi quando fiz esse exercício de tentar encontrar personalidades pretas em personagens não-pretos pela primeira vez foi: existe um grupo — nada discreto, por sinal — que determina como pessoas pretas são representadas e a importância dos seus feitos. E isso não é uma exclusividade de animações; o cinema e a TV estão cheio delas.

Isso acontece, também, quando existe uma tentativa por parte da indústria de não ser racista. E sim, há um problema aí. Porque, muitas vezes, essas coisas passam despercebidas do grande público.

Tentativas racistas de não ser racista

Quando Ghost in the Shell foi anunciado com Scarlet Johanson como Major, muito se falou sobre whitewashing — ou a substituição de pessoas asiáticas por brancas em produções centradas em um ambiente asiático. Bem, eu não estava lá, mas imagino que o mesmo não tenha acontecido quando Max Fleischer se inspirou em Esther Jones — preta — pra criar a Betty Boop — branca. Ou quando "esqueceram" a origem africana de Santo Agostinho. Podemos tratar como blackwashing?

Mas, com o avanço das décadas, tecnologia, acesso a informação e globalização, a indústria começou a pensar em formas diferentes de falar sobre pessoas negras. E tentar não ser racista.

Negro mágico

Exemplo de Negro Mágico: Mel Gibson e Dany Glover em Máquina Mortífera

Se você já assistiu ou leu Sítio do Pica-pau Amarelo, deve saber quem é o Tio Barnabé. Velhinho carismático, engraçado, que é adorado pelas crianças brancas netas da Dona Benta, sempre com um conhecimento ancestral na ponta da língua (ou uma frase de efeito óbvia). Não tem como ter problemas num Tio Barnabé, tem?

Bem, para Spike Lee, que cunhou o termo "negro mágico", tem. Personagens como o de Monteiro Lobato (talvez o racista mais conhecido de nossa literatura) entram na categoria do Negro Mágico. Um personagem sem muita profundidade, que está sempre por ali — mas nunca é o principal na ação —, bastante gente fina e que possui conhecimentos ancestrais (às vezes, mágicos) importantes pra ajudar o herói branco a cumprir sua missão de salvar o mundo. Basicamente, Morgan Freeman em Menina de ouro, Dany Glover em Máquina Mortífera, Naomie Harris em Piratas do Caribe: O baú da morte, Don Cheadler em Family Man e tantos outros casos.

O preto, nesses casos, não é um Mandingo, Jim Crown ou Coon — casos de racismo explícito. Ele é diferente de tudo isso e, ao mesmo tempo, uma representação racista. No final das contas, todos esses atores negros concorreriam como coadjuvantes, porque esse é o papel de seus personagens: auxiliar o personagem branco em sua caminhada branca de salvação do mundo branco.

Jemima

Exemplo de Jemima: Dona Benta e Tia Anastácia, do Sítio do Pica-pau Amarelo

A versão feminina do Negro Mágico. A empregada dedicada, preta, gorda, seios grandes, que cozinha bem, cuida das crianças da patroa como se fosse sua mãe e é tão queria por todos que é quase como se fosse da família. Quase.

Basicamente, é a Tia Anastácia.

Toda novela da Globo tem uma Jemima pra chamar de sua. Pode ser de época ou contemporânea, das antigas ou recente. Isso porque, se popularizou a presença de mulheres pretas como serviçais dedicadas, que não possuem conflitos, interesses ou vivências fora do núcleo doméstico de seus patrões, que são extremamente dedicadas à família dos patrões. É tão racista que passa por positivo.

White savior

Exemplo de white savior: Sandra Bullock e Michael Oher em Um sonho possível

Se você vê problemas em A Grande Muralha mas adora Um sonho possível, tenho uma péssima notícia pra você.

Esse estereótipo racista, mas que não passa como racista de início, é o oposto do Negro Mágico. Aqui, o preto não é o personagem que tem sempre uma solução mística pra um problema simples demais pra uma mente branca. Ele é, justamente, o cara que precisa de uma ajuda branca pra lidar com um problema. Porque, se não fosse a Jennifer Gardner em Escritores da liberdade (filme que, um dia, já considerei como o meu preferido — pra você ver o quão problemático isso pode ser) pra salvar a vida de tantos jovens pretos periféricos fadados a uma vida marginal, eles não seriam nada. Ou se não fosse a Sandra Bullock em Um sonho possível consertando os rumos da vida do personagem interpretado por Michael Oher.

Loretha

A própria personagem Loretha Holloway é um exemplo desse estereótipo racista (que também pode ser encontrado como Sapphire)

Esse é o famoso caso em que o racismo se disfarça de "personalidade forte".

Uma Loretha (personagem de Taraji P. Henson na série Empire) é o completo oposto da Jemima. Ela também cuida do lar, mas não tem o menor tato pra lidar com as criança ou com o marido. É, quase sempre, estressada, autoritária e bota tudo do jeito dela. E só.

Também conhecida como Sapphire nos EUA, esse estereótipo racista (e que, como disse antes, pode ser facilmente mascarado como "personalidade forte") foi utilizado pra justificar o desemprego e pobreza de homens negros no pós-escravidão estadunidense. Uma Loretha é dominada pelas emoções, não se importa com a solidão ou com os danos que sua personalidade causam em seu ambiente familiar, que enreda tudo e todos dentro de suas próprias rédeas. E, se um homem preto não consegue lidar com a própria esposa preta, também não conseguiria lidar com um emprego — esse era o motivo apresentado pelos cientistas sociais da época.

Esse, talvez, seja o mais complicado de todos, porque existe uma outra representação de mulheres pretas bastante parecida, mas que possui um "limite": Rochelle. Mulheres pretas como a personagem de Tichina Arnold, em Todo mundo odeia o Chris, são quase uma Loretha — quase, porque, mesmo expansivas, autoritárias e, aparentemente, histéricas, elas são ótimas líderes, preocupadas com o bem-estar da família e confiáveis. A título de comparação: você pode ver Queen Latifah fazendo tanto Lorethas quanto Rocheles em seus papéis.

Assim como uma pessoa branca que tá no movimento hip hop, ter cuidado na hora de representar personagens negros, sejam no cinema, séries ou livros, é o mínimo pra não fazer merda — como as que Nabrisa vive fazendo. E o cuidado tem que ser redobrado quando as intenções são positivas. Porque você pode até pensar que tá botando no papel um Infiltrados na Klan mas, na real, tá só fazendo outro Green Book.

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Alan de Sá
Explico melhor escrevendo

Journalist, writer, copywriter and co-creator of sertãopunk.