Estão inventando o Nordeste. De novo

Alan de Sá
Explico melhor escrevendo
10 min readSep 4, 2019

Um dos maiores pensadores sobre a construção popular do Nordeste brasileiro, Durval Muniz de Albuquerque Jr. disse a seguinte frase:

“O Nordeste, assim como o Brasil, não são recortes naturais, políticos ou econômicos apenas, mas, principalmente, construções imagético-discursivas, constelações de sentido.”

Já outro pensador, Eric Hobsbawm, traz em sua obra Nações e nacionalismo uma definição de critérios de fundamentação de estado-nação que, anos depois, foi endossada por Michel Foucault:

O primeiro destes critérios era sua associação histórica com um Estado existente ou com um Estado de passado recente e razoavelmente durável. (…) O segundo critério era dado pela existência de uma elite cultural longamente estabelecida, que possuísse um vernáculo administrativo e literário escrito. (…) O terceiro critério, que infelizmente precisa ser dito, era dado por uma provada capacidade para a conquista. Não há nada como um povo imperial para tornar uma população consciente de sua existência coletiva como povo, como bem sabia Friedrich List. Além disso, no século XIX, a conquista dava a prova darwiniana do sucesso evolucionista enquanto espécies sociais.

Até aqui, esse parece ser um texto com recortes acadêmicos, somente. Mas, antes de falar sobre o tema de hoje, precisava trazer esses dois trechos. Porque eles fundamentam a maior parte das minhas opiniões sobre um movimento estético e literário que ganhou projeção na internet, sobretudo entre os autores e escritores nacionais: o cyberagreste.

Tudo começou quando o artista gaúcho Vitor Wiedergrun lançou uma série de ilustrações chamada "cyberagreste", que trazia a estética do cyberpunk com elementos que remetem a expressividade nordestina em âmbito nacional: o cangaço. Sim, porque, aparentemente, todo nordestino é, em algum grau genealógico, criminal, social, educacional ou artístico, um cangaceiro.

Esta última foi nomeada de Ciberpampa pelo autor, logo, não entra na lista de ilustrações ciberagrestes.

As imagens viralizaram nas redes sociais, o que fez algumas pessoas pensarem, sim, em um movimento de sci-fi nordestino e cyberpunk. Recentemente, a jornalista (e também escritora, responsável pela organização de 2084: Mundos Cyberpunk, da editora Lendari) Lídia Zuin, publicou um artigo em seu blog entitulado Amazofuturismo e cyberagreste: por uma ficção científica brasileira, em que traça um paralelo entre o surgimento dos primeiros autores nacionais do gênero e os percursos até a chegada dos "subgêneros" nacionais.

Em seu artigo, Lídia ainda traz algumas referências recentes do gênero, como o conto "A Luta do Cangaceiro Jedi", do paulistano Roberto de Sousa Causo, naquilo ela chama de "tupinipunk"; "Filhos do Metal e da Caatinga", da campinense Laisa Ribeiro; e "Cangaço Overdrive", de Zé Wellington e Walter Geovani, os únicos nordestinos entre os citados no artigo.

Sobre amazofuturismo eu não posso falar. Não tenho proximidade com a vivência e cultura amazônica o suficiente pra entender o quanto do movimento faz sentido se comparado com a região. Esse texto é para falar sobre cyberagreste.

Eu juro que vou tentar ser menos ignorante do que didático ao explicar todos os problemas acerca do cyberagreste e o porque dele ser tão perigoso para a cultura nordestina.

Problemas fundamentais do que é o Nordeste

Assim como todos os países da América do Sul, o Brasil passou um longo período de colonialismo e desvalorização da cultura popular. A arte virou artesanato; a religiosidade, feitiçaria; o idioma, dialeto; as vestimentas, fantasia; a expressividade, pecado. Por isso, quando se fundamenta o Brasil enquanto Estado independente de Portugal, precisava-se criar um mito de criação igualitário, algo que já existia na Europa e em parte da Ásia. Só que, pra isso, movimentos populares, sobretudo no Norte e Nordeste, foram suprimidos para que a "unidade" prevalecesse. Esse foi o primeiro dos cala-a-boca impostos aos nordestinos.

Na virada entre os séculos XIX e XX, fez-se necessário repensar a forma em que o Brasil estava dividido — Norte e Sul. A industrialização já chegara ao Sudeste, a produção de café era forte na região e o processo migratório, iniciado durante a seca de 1877 e 1879 ainda permanecia de pé (ao contrário da visão naturalista, que já apresentava decadência).

Até os anos 30 do século XX, uma série de construções sociais agiu na fundamentação da ideia de Nordeste, desde articulações políticas e da elite nordestina decadente pela queda da produção açucareira até debates acadêmicos. Essas múltiplas falências levam artistas e estudiosos a "traçar" o Nordeste como região-base de dois pontos:

  • A saudade do lugar comum, do lar, abandonado em prol da busca por uma vida melhor no Sudeste do desenvolvimento;
  • O tradicionalismo pré-capitalista e agrário, regado com o suor da roça e freio do avanço intelectual e social da região.

Esses dois fatores são os principais alicerces da ideia nacionalmente difundida de sertão nordestino.

Dentro disto temos uma série de produções que buscam usar da cultura popular nordestina e de conceitos pré-estabelecidos sobre a região para justificar o Nordeste como a "terra da saudade e da magia", desde as produções de José Lins do Rego e Gilberto Freyre até as peças de Ariano Suassuna e Vidas Secas, de Graciliano Ramos.

Os períodos de escassez na região deram aos artistas brasileiros da época o elemento primordial da "jornada do nordestino" das obras do gênero: a migração de um guerreiro matuto de um inferno seco para o paraíso sulista e litorâneo. E, como consequência disto, a saudade de uma terra que traz tradições, folclore e magia.

Interpretação equivocada de símbolos regionais

Ao longo dos anos, a forma como o Nordeste vêm sendo representado nas produções mudou. Ao invés de seca e do exotismo do século XX, as tramas, sobretudo televisivas, trouxeram um neo-cangaço, onde os carros são como carroças, as motos são como os jegues e os nordestinos são brancos. À exemplo disto temos Amores Roubados e Reza a Lenda, ambos surpreendentemente protagonizados pela mesma pessoa: Cauã Reymond.

Dentro do âmbito audiovisual, é essencial que a mesma imagem continue presente no imaginário popular. Por isso, nos últimos seis anos, 4 das produções em formato minissérie da Globo foram ambientadas no Nordeste. Se contarmos as "superséries" ainda surge a problemática Onde Nascem os Fortes, que reforça ainda mais a ideia de Mad Max sertanejo nordestino.

O cyberagreste é um movimento que ainda está se difundindo. E, por não estar culturalmente estabelecido, é o momento de se fazer críticas à forma e que vão evitar que, quando isto chegar ao mundo do audiovisual (o que não duvido), os mesmos erros de sempre não sejam cometidos.

Todo mundo, minimamente, conhece Lampião. Porque é uma figura amplamente difundida. Um líder criminoso com um bando valente, que tocava o terror e era acompanhado de uma figura feminina de expressão: Maria Bonita. E nordestino. Em todas as representações de Lampião na cultura nacional, nenhuma delas se permite esquecer a nordestinidade do personagem, seja quando é para tratá-lo como herói regional ou bandido.

Não se pode esquecer a existência do cangaço (que, inclusive, nasceu no sertão da Bahia, com o bando de Lucas da Feira) nem minimizar seu impacto na produção jornalística nacional, na cultura popular ou na estruturação das cidades do interior nordestino.

Mas estamos em 2019. Fazem 81 anos da morte de Lampião. O cangaço já não existe mais.

Só na Bahia, meu estado de nascença e criação, milhões de famílias receberam, de 2006 até 2014, cisternas que comportam mais de 10 mil litros, em média, de água; a seca já não é um problema tão grande. Há energia elétrica, rodovias estaduais e federais, ferrovias e aeroportos conectando a maior parte do estado. Ainda somos um dos maiores produtores de cacau do Brasil, mesmo com as crises de vassora-de-bruxa nas cidades de Ilhéus e Itabuna nos últimos anos. O Vale do São Francisco possui uma quantidade enorme de fazendas, desde grandes até menores, de produção de uva. No litoral, o porto de Salvador — que tem a única baía inteiramente navegável do mundo, a Baía de Todos os Santos — , passa por obras de expansão já a algum tempo. Isso sem falar em outras regiões, como o Vale do Capão na Chapada Diamantina, as praias do Litoral Norte, a produção artística manual da região do sisal, as multifacetas das religiões de matrizes africanas, a diferenciação de sotaques por cidade entre outras séries de elementos, desde organizações politico-partidárias até a forma de se comunicar com um vizinho.

Isso é só na Bahia. Um dos nove estados do Nordeste. E nem falei tudo.

O cyberagreste não leva nada disso em conta, e por um motivo simples:

Não é um movimento propagado por mãos nordestinas

Um dos materiais que Lidia traz em seu artigo é Cangaço Overdrive, obra de dois cearenses. Uma obra que traz cangaço, ciborgues e cordel. E que, de longe, não se diferencia tanto de algo que algum escritor ou quadrinista sudestino ou sulista pensaria em fazer. Mas existe um motivo pra obra de Zé Wellington ser tão boa: há propriedade de fala no uso dos elementos. É a visão de nordestinos sobre elementos nordestinos. O que também se repete em Estranha Bahia (Ex! Editora), coletânea organizada, escrita e editada por autores baianos sobre percepções regionais.

Nesses casos, o que proporcionou a qualidade não foram somente as pesquisas que cada um realizou, à sua maneira, mas a própria estrutura de realidade que a vivência nordestina lhes deu. Essa é a base para a ficção científica com o Nordeste em foco: ser do Nordeste.

Ver autores sudestinos e sulistas usando elementos culturais que, em grande parte, não conhecem com profundidade para criar histórias que usam o "belo pelo belo" não traz qualquer representatividade ao Nordeste. Muito pelo contrário, somente traz problemas a uma região que convive há anos com o estigma de ser a "reserva selvagem" do Admirável Mundo Novo que é o Brasil.

Achar que é tudo bem alguém fora da realidade nordestina pintar um "cyberagreste", seja na literatura ou nas artes visuais, é a mesma coisa de achar que Pantera Negra seria a mesma coisa sua equipe fosse branca, que achar verossímil um casal LGBT+ escrito por um homem cis hétero ou embasar todo o conhecimento sobre tribos indígenas tendo como única leitura O Guarani.

A literatura nacional é um projeto de exclusão

O segundo critério de Hobsbawm parece adivinhar o surgimento do cyberagreste, da forma que se deu. Uma elite cultural, estabelecida no Sul e no Sudeste do Brasil, que já atua como protagonista no jornalismo, na publicidade, na especulação financeira e em outras engrenagens da máquina capitalista, passa a recriar à sua maneira o Nordeste.

Esta mesma elite, por contar com o aporte do dinheiro de suas regiões e da facilidade de propagação cultural sequestrada por séculos do Norte e do Nordeste, tem, sim, poder para criar este imaginário cyberagrestiano que não reflete em nada a realidade da região, estabelecer o movimento e criar pequenos grupos de produtores literários — grupos estes que, assim como foi com a fantasia, o terror e a alta literatura, serão excludentes para com os nordestinos.

Como já disse antes: estamos em 2019. O cangaço não existe mais, mas o Nordeste sim. E existe literatura, sim, lá. E que não depende de aporte, seja visual ou estrutural, de sulistas ou sudestinos.

Não consigo, sinceramente, desassociar esse movimento — produzido do jeito que está, pelos atores que estão se estabelecendo — de uma forma velada de xenofobia. E que consegue ser ainda pior do que a desmascarada: ela vem disfarçada de adendo, complemento e incentivo quando, na verdade, vai criar os mesmos problemas de sempre, segregar ainda mais e continuar mantendo a produção literária nordestina na espiral do silêncio.

Possibilidades de existência de um cyberagreste

Mesmo não gostando do termo, da origem e da forma que está tomando, acho que, dificilmente, o cyberagreste entrará no limbo de "coisas que podem ser feitas dentro da literatura nacional". Sulistas amam pagar de white saviors da literatura regional. Então, como forma de organização do novo subgênero da ficção científica, há de se deixar claro pontos que precisam estar presentes nas narrativas:

  • Protagonismo nordestino nas produções cyberagrestianas. Histórias feitas por mãos de pessoas da região, das mais diversas letras da sigla LGBT+, cores de pele e cidades da região;
  • Presença de elementos culturais e sociais reais, sem estereótipo de vaqueiros, cangaceiros, coronéis, sinhás, baianos ou qualquer um dos tipos estabelecidos no imaginário nacional;
  • Conexão com as mais diversas tradições da região, respeito ao folclore regional, pluralidade de sotaques, cores e formas;
  • Desconstrução da estética estabelecida de seca, saudade e tradicionalismo como freio do desenvolvimento intelectual e social do nordestino;
  • Uso da oralidade típica do Nordeste como forma de projeção de um futuro em que não existe qualquer forma de dependência da região com os grandes centros financeiros brasileiros (Sul e Sudeste);

Para evitar qualquer tipo de equívoco sobre a primeira das regras da produção cyberagrestiana, listarei uma série de coisas que não te classificam como nordestino:

  • Nascer fora do Nordeste;
  • Ter parentes distantes no Nordeste;
  • Passar as férias no Nordeste;
  • Achar o sotaque nordestino (como se todos os estados falassem da mesma forma) bonito;
  • Achar que sabe tudo sobre o Nordeste porque tem amigos nordestinos;
  • Ir pro Carnaval de Salvador e ficar no camarote o tempo inteiro;
  • Ir pro São João de Caruaru vestido(a) de neo-caipira;
  • Forçar sotaque nordestino;
  • Fazer vatapá com massa de pão;
  • Comer acarajé vegano;
  • Pintar a pele com os desenhos da Timbalada quando for no Pelourinho de Salvador;
  • Achar que cangaço foi só Lampião;
  • Achar que o Nordeste é só cangaço e seca;
  • Nascer fora do Nordeste.

Aliás, "cyberagreste" não é um bom nome pra um movimento nordestecêntrico de ficção científica. Sertãopunk soa melhor.

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Alan de Sá
Explico melhor escrevendo

Journalist, writer, copywriter and co-creator of sertãopunk.