A Esbelta Girafa & a Ínfima Formiguinha

_erinhoos
Alan Turing morreu com seios
4 min readMay 31, 2021
Fonte.

A Esbelta Girafa, ressentida & rancorosa, olhava para o horizonte caçando a quem ofender.

Fazia um Sol de bronzear no Zoológico, mas não havia ninguém para admirar & adular a Esbelta Girafa, porque era segunda-feira, e a bicharada não entendia muito bem por que é que segunda-feira todo mundo ficava tão preguiçoso. Ai ai, esses humanos, sempre tão esquisitos…

Pois bem, era segunda-feira, e do alto da sua girafância, a Esbelta Girafa avistou pequenina & tacanha a Ínfima Formiguinha em um ramo de folhas na copa de uma árvore. Seu dia estava feito: ia destilar todo o seu melindre para sair do tédio. Mal a avistou, tratou de dizer:

Ó, vossa pequenência, que bons ventos a trazem? E por falar em vento, deves ser deveras destemida, pois até mesmo a mais leve brisa é capaz de fazer-te alçar voo. Além disso, é visível vosso cansaço. Deves ter demorado aaaanos para subir até aqui, tão esmilinguida és.

Ressabiada & resoluta, prontamente lhe respondeu a Ínfima Formiguinha:

Ó vossa pescocência, por que me miras e atazanas? De tanto cuidares da vida alheia vais ficar com torcicolo. Não sei eu que se me olhavas de esguelha até um segundo atrás, era tão e somente pelo medo de, na pressa, se embolar toda e dar um nó na garganta? Cuidado, dona Esbelta, pois nessas já vi muito falador dar nó na língua.

Com medo de demonstrar surpresa pela resposta, a Esbelta Girafa soltou então uma ruidosa gargalhada, capaz de acordar até o Descabelado Leão, que vivia do outro lado do Zoológico. Disse, em seguida, em tom provocador:

Podes falar mais alto? É que com sua estatura irrisória tenho dificuldade de escutar o que dizes. Por que não fazes dessa tralha toda que carregas pra cá e pra lá um alto-falante?

A Ínfima Formiguinha não deixou por menos:

Pois bem, cuidado!, pois esguia do jeito que és, capaz de te confundirem com um poste e colocarem uma lâmpada nessa tua cara ossuda de joanete. Além disso, em dias de Sol como hoje, em que de tarde fica tudo amarelo, e o vento faz subir uma espessa poeira, quase não dá pra te enxergar com esse teu eterno pijama camuflado.

Contrariada, a Esbelta Girafa redarguiu irritada:

Olhe para mim, cabeçuda. Eu sou linda & exuberante. Todos me amam! Tenho sombra e água fresca, além de sempre estar ao lado de uma frondosa & frutífera árvore — esta cujas migalhas você vem aqui colher. As crianças querem tirar fotos comigo e os pais se divertem com o meu jeitão. Tu, pelo contrário, vives uma vida de escrava, pau mandada que és, tendo todos os dias que buscar bugigangas para Sua Ínfima Alteza, vencendo longas distâncias para fazer literalmente “trabalho de formiguinha”. Eu faço a siesta todos os dias, e quando não estou entretendo famílias, tenho tempo para refletir e…

A Ínfima Formiguinha não resiste e a interrompe, completando:

…Dar uma de enxerida! Eu não sei de onde vem a maldosidade das tuas palavras, dona Esbelta. Mas devo dizer que você não está completamente errada. Eu trabalho sim para Sua Ínfima Alteza, um trabalho que faço desde larvinha e que farei até morrer. Tenho orgulho de fazer esse trabalho, pois nosso reino é um reino em que todos trabalham para todos e para o nosso futuro. Ao proteger Sua Ínfima Alteza, também protegemos a salvaguarda da nossa próxima geração, que vai continuar o nosso trabalho depois que nós formos para o Ínfimo Céu das Formiguinhas. Posso ter uma vida de súdita, mas na minha labuta quem manda sou eu, dona Esbelta. Tenho autonomia para decidir o que pegar, com quem eu vou e por que caminhos ir.

Então, ajeitando a gargangola, a Esbelta Girafa se enclinou em direção à Ínfima Formiguinha, fitou-a, e disse pausadamente, em ar desafiador & cínico, as seguintes palavras:

Ah, sim! E és feliz assim? Eu duvido que sejas!

A Ínfima Formiguinha, então, suspirou, olhou para o lado e viu que o ramo que a sustentava estava apoiado em uma grade. Então, sem pressa, mas também sem lentidão, caminhou para fora da gaiola onde vivia a Esbelta Girafa, e, uma vez fora, virou para ela e a olhou bem fundo nos olhos. Nesse instante, a Esbelta Girafa entendeu que a Ínfima Formiguinha, apesar de servir a Sua Ínfima Alteza, podia sassaricar pr’aqui e pr’acolá se quisesse, indo buscar o que quisesse onde quer que fosse e ir trabalhar junto com seus ínfimos amigos nas paragens mais distantes e recônditas. E ela, a Esbelta Girafa, por mais adulada que fosse, não podia fazer nada disso. Diante desse pensamento, a Esbelta Girafa emudeceu, e pareceu ficar triste.

Às vezes um gesto, apenas um gesto, mais do que mil palavras, pode dizer coisas muito, muito profundas.

A Ínfima Formiguinha, contudo, não ficou feliz, apesar de, de certo modo, ter ganhado a discussão. Ela foi embora sem olhar para trás, porque tinha medo de magoar a Esbelta Girafa mais do que talvez houvesse magoado. A Esbelta Girafa, por outro lado, recolheu-se encolhida & pensativa. Ela não conseguia entender — e não achava justo — por que alguns bichos, como a Ínfima Formiguinha, tinham a dádiva da liberdade, e por que outros, como ela mesma, apesar de lindos & exuberantes, viviam dia após dia em uma cela, sem razão aparente. Anoiteceu, ela chorou, dormiu e sonhou com uma savana sem fim.

Às vezes, alguém que conta muita vantagem, só o faz para se sentir menos solitário, menos preso, menos infeliz.

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_erinhoos
Alan Turing morreu com seios

_antropólogo, barista informal, errante incorrigível, cantor de karaokê, sérião nas horas vagas