Eu moro numa cabine, sabe?
É, aquelas cabines de sacanagem do centrão.
Eu moro numa cabine, sabe?
É, aquelas cabines de sacanagem do centrão. Aquelas cabines sifilíticas.
Ah, você não sabe o que são? São lugares esquecidos por Deus e desprezados pelo Diabo. E eu moro numa delas, um anti-paraíso sodomítico habitado por morcegos da mente e frequentado pela nata da escória social.
Aqui a matéria-prima da umidade são suores anticristãos. E o vício é a regra. Homens e outros seres das mais complexas estirpes batem à minha porta, punhetas sebosas e radioativas. A mobília é o meu corpo em pandarecos, sendo o chão de sucata consagrado pelas horas mais avançadas, esbaforidas e ébrias. A fresta permite entrever o que sobrou de luz dentro dessa exígua gruta guardada pela penumbra.
Olha, falando assim eu posso até passar uma impressão ingênua e falsa de que o lugar em que vivo é inóspito e indesejável. Mas no fundo… Olha, no fundo mesmo, essa cabine, esse pedaço sulfúrico de carniça da alma, esse olor acre movido a enxofre, esse engodo claustrofóbico como um pulmão canceroso, esse gosto promíscuo de gangrena na garganta, esse pomo de Adão sem Adão, esse bolor humano, essa porra viscosa e brancacenta como um chorume, esse aborto escalavrado esquecido entre vermes esganiçados se contorcendo mudos presos em um inferno atemporal…
No fundo, essa cabine é lar. Um verdadeiro lar. Um útero — cansado, mas infalível — que acolhe almas desgarradas e esfarrapadas — como eu — , dores — as invisíveis e as desgraçadas — , anti-amores que se beijam viscerais e impossíveis.
A cabine da putaria é a mãe de tudo que o mundo se recusa a enxergar.