Nossa Senhora do Sagrado Coração

_erinhoos
Alan Turing morreu com seios
4 min readFeb 27, 2019
Hora da refeição nas trincheiras, Otto Dix, 1924.

De todas as formas de amor, ele escolheu a mais distante.

Retornando da labuta, a gengiva e o seu gosto de níquel, os sapatos furados, o olhar assim meio puído, mas em algo ansioso, uma ansiedade, não sei muito bem como qualificar, quase aquela púbere, deitada sobre uma revista pornodidática.

Entrou pela porta dos fundos, única que sobrou funcional, cantando qualquer coisa esquecida pelo meio dia, quando ainda não chovia assim gelado. Tirou a camisa amarga, a calça cobre, e ficou a avaliar no espelho perdido na lavanderia o próprio corpo.

Tinha mais que vinte tatuagens -- dizem, posto que parou de contar na terceira. Algumas quase desbotadas, outras discretas, porque se confundiam no através do moreno-azeitonado.

Cedo não era, mas lá estava ele perdido pelas animações que sua cabeça desenhava ao longo da sua pele. Um rosto de criança, um Mickey, um palhaço que ria histericamente, Nancy (no antebraço), e a roseira cheia de espinhos cujo tronco se confundia com os pêlos distribuídos no abdômen, que se transformavam em um denso xaxim de pentelhos cujo rizoma se escondia quase que voluntariamente trás de uma cueca cavada de algodão feita preta, mas então de cor grafite.

Foi de olhar para si próprio, o produto integral de anos de investimento nas ruas e estúdios de tatuagem informais, cicatrizes de agulhas, cacos de vidro, navalhas e arames, de olhar para o corpo viril e honrado, mas também pequeno, magro, seco, patético, foi desse sentimento quase completo de reconhecer o poder e sua ausência completa, que o conteúdo até então tacanho da peça grafite começou a crescer.

Cresceu, membro nu e escondido, tanto, e com tal facilidade, a ponto de, em poucos instantes de autocontemplação, ser possível vislumbrar o pico brilhante da superfície, a baba que secretava involuntária do ponto de encontro entre o desejo delinquente e a pura humanidade, a mancha brilhante e seminal na flâmula hasteada para o lado esquerdo da cueca desbotada--que, no espelho, era também esquerdo.

Dengo,

Ouviu sem querer,

Dengo, você tá aí?

Disparou o coração, mais do que o pau. Correu para o quarto, dois cômodos de distância. Entrou no aposento imundo, uns três montes de roupa bastante suja, um colchão cheirando a suor, duas quinas verde-acinzentadas no teto, um armário grande, tão grande, como se fosse uma segunda casa dentro da primeira. Um violão sem cordas. A frustração, luto dos dias com odor de gordura fresca, copaíba e lavanda.

Você não arrumou a casa,

Disse entediado.

Silêncio. Onde ela estaria?

Onde cê tá? Onde cê tá?,

Repetia como se não conhecesse o jogo, como se não o tivesse criado e executado dezenas de vezes. Perscrutou pelas pilhas mal-cheirosas, lugares improváveis como sob o colchão. Naturalmente, não a encontrava. Estava cheio de sangue pulsante e borbulhante dentro de si, não quis se demorar no gracejo. Chovia lá fora, ele era tempestade por dentro.

Abriu as portas do extenso e despropositado armário como uma tormenta abre uma cratera no subúrbio.

Lá estava ela, imóvel, olhar sereno, leve roxidão nas maçãs do rosto, com um sorriso inaudível, contido, para dentro, o corpo improvável dentro de um bem cerzido maiô de algodão cor maravilha. Em contraste, o cetim marfim do echarpe que vestia seus ombros. Dois brincos de louro folheados a ouro, um cordão simples de latão sem pingente e o destaque para as videiras secas, esturricadas, cuidadosamente enoveladas pelo cabelo de queimado alvinegro. As unhas das mãos estavam delicadamente pintadas, mas dificilmente escondiam a sujeira cor grafite acumulada por debaixo, o pó da espera. Havia um pequeno desastre na coxa esquerda, uma depressão estranha quase perto do joelho, um detalhe malogradamente indisfarçável, apesar de uma cinta-liga verde-aveludada que se lhe intentava encobrir. Pés brincalhões e descalços, tão pálidos e nus quanto quase todo o resto.

Dois barbantes içando cada trapézio.

O homem despiu-se rindo, atirando seus olhos agora marinhos por sobre o corpo da ninfa que se lhe oferecia em zombaria pelo gesto.

Sentiu-se aquele eterno adolescente.

Rompem-se as amarras do desejo.

Agarrou o doce corpo imaculado, quase jovem, e o lançou num gesto quase irresponsável sobre o colchão esmagado.

E da encantada musa beijou a fronte, apoiando o joelho por entre seus bambos alicerces. E foi vestindo e despindo freneticamente a pica com a mão que suava, suava. Desceu com a ponta do nariz pelo pescoço, um resto de lavanda, enquanto se masturbava no ritmo alucinado do adolescente que pleiteava ser, no alto dos seus trinta e quatro. E lembrou que fazia já pouco mais de um ano que ela estava ali naquele estado, mas aquilo era muito bom, tê-la ali, o segundo grande segredo da sua vida, capaz ainda de fazê-lo arrepiar e intumescer. E, enfim, arriscou descer com os lábios um pouco mais para baixo, só mais um pouco, na estrada lancinante do desejo, um pouquinho só mais para baixo.

E ejaculou-se todo em lágrimas sobre a peça taxidermizada,

Minha santa,

De cujo peito pendia opaco, sulco escancarado na caixa torácica, o coração.

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_erinhoos
Alan Turing morreu com seios

_antropólogo, barista informal, errante incorrigível, cantor de karaokê, sérião nas horas vagas