_o céu de Renan

_erinhoos
Alan Turing morreu com seios
3 min readMar 22, 2018

A tarefa de instruir e organizar os outros recaiu naturalmente sobre os porcos, reconhecidamente os mais inteligentes entre os animais. Salientavam-se, entre eles, dois varões, Bola-de-Neve e Napoleão, que o Sr. Jones criava para vender. Napoleão era um cachaço Berkshire, de aparência ameaçadora, o único Berkshire da fazenda, pouco falante, mas com reputação de possuir grande força de vontade.
George Orwell, A revolução dos bichos, 1945.

Ilustração de Amanda Jackson para Revolução dos bichos. Fonte.

“Pensei que tinha se esquecido de mim”.

Renan tem algum prazer mórbido pelo risco de ser flagrado por conhecidos ao lado de pessoas estranhas. Por estranhas não quero dizer apenas fora do convívio habitual, mas, como posso dizer… Diferentes mesmo, morfologicamente assimétricas, com descontinuidades cromáticas, com modos indocilmente avaliados como repugnantes. É que, não devendo a ninguém explicação nenhuma a respeito de nada, homem feito que é, ele pensa que aquilo talvez possa agudizar a curiosidade dos vizinhos e demais passantes sobre seus mistérios. Renan é vaidoso.

“Correria”.

Correria, correria nada, é início de mês, isso sim!, pensa. O Amasiana reinaugurou, e eles foram o quinto par a estrear o novo outfit do estabelecimento. Quando abriram a porta do 433 Eros, Renan não pôde disfarçar a voltagem do impacto. Todas as paredes, o teto, a porta do banheiro, tudo aquilo remontava ao céu de Tupi Paulista, companheiro de intermináveis horas, aquela caça incessante por estrelas cadentes, aquele céu tão iluminado pelos pisca-piscas que parece uma modalidade diferente de dia.

“Tá tudo bem?”

De imediato não houve resposta. O zunido das cigarras, o tapa na cara, o torresmo fresquinho, a noite em claro no posto sendo consumido pela febre, a febre de rasgar os limites do município rumo a outras abóbadas celestiais. Em São Paulo era feliz, mas dificilmente tinha tempo para se dedicar à contemplação de um céu, que, a bem da verdade, não é lá grande coisa na metrópole.

O outro não precisou repetir a pergunta — o cheiro de cigarro caro em combustão faz recobrar a consciência ao astronauta.

“Vou tomar uma ducha. Dia quente da porra”.

Renan sabe que o céu é uma platitude de planícies. Mas não deixa de desejá-lo. Ele sonha todos os dias com ele. É difícil entender, vendo todas aquelas representações celestiais enfadonhas, que a vida trivial e paumolescente governada por São Pedro seja a recompensa maior pela temência a Deus.

Renan acha isso, mas aguarda ansioso pelas trombetas do paraíso.

Às vezes Renan acredita já estar vivendo seu próprio purgatório. É quando está em cima de algum homem de pele márcida e oleosa, penteando fios encravados e descontínuos em corpos doentes, às vezes salpicados de manchas roxas, lutando contra o látex para penetrar um terreno sórdido, trazendo para a superfície um petróleo malcheiroso, o quinhão de chorume das sucatas humanas.

Contudo, é do encontro desajeitado entre superfícies dermais acidentadas que por vezes o rapagote se flagra numa relação íntima com Ele. São esses momentos levemente desonrosos — um brilho no olhar daquele que subitamente se descobre desejado, no capturar furtivo de um maço de notas azuis da mão micótica de um quasímodo de modos suínos e aparência socialmente refutada — ,em instantes como esse que ele se entende manipulado pela benfazeja mão do Criador.

Ser sugado parece ser sua penitência. Mas o júbilo em apanhar as tão gratificantes filipetas não pode ser nada senão um sinal divino da recompensa de sua tacanha e pungente existência na Terra.

Foi de olhar fixamente para o canto morto onde jaziam cansadas as cédulas tímidas, castas, recém-impressas, que, no aposento carregado pela decoração sideral, ele subitamente concluiu.

“Os garotos de programa vão pro céu”.

O outro voltava quente ao aposento. Difícil de regular a temperatura no box. Trazia penduricalhos entre os vincos sebosos, um óculos, uma toalha ensopada, caminhos de pêlos tornados inconstantes em função do mau humor dos vulcões. Sentou-se ao seu lado e acarinhou-se a fronte contra o ombro viril como um siamês apaixonado. Lembrou-se de algo impublicável, que fê-lo sentir vergonha de si mesmo. Levantou-se dando um impulso escalafobético e iniciou a vagarosa tarefa de vestir-se, enquanto Renan voltava a repousar as retinas com ternura sobre as vibrantes notas de cem.

“Os clientes também vão pro céu”.

Ainda era uma da tarde de uma terça-feira, e a grande estrela do sistema solar sabotava incansavelmente a já excruciante jornada do povo que passava distraído do outro lado das persianas.

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Alan Turing morreu com seios

_antropólogo, barista informal, errante incorrigível, cantor de karaokê, sérião nas horas vagas