_o nome

_erinhoos
Alan Turing morreu com seios
3 min readJan 21, 2021
Fonte.

A esquina da penumbra, dois olhos que te interpelam de um ângulo oculto, almas abstrusas que cruzam calçadas na contumaz epopeia notívaga, a cidade teimando para não adormecer, e ele, ou um pedaço seu, derrama as trôpegas memórias ao longo do cadenciado voltar-para-casa, em um pouco calculado zigue-zague na rua Bento Freitas.

Carrega na fumacenta mão direita, vagalumeando ao sabor do vento, um cigarro interminável, imediatamente reposto quando incendiado até o toco. Na urgente mão esquerda, uma garrafa bronzeada que se recusa a terminar, acumulando dentro de si a poeira citadina, as quentes borbulhas incapazes de molestar a ébria garganta, os ácaros, únicos bichos capazes de habitar o corpo humano sem reclamar. Na cuca, se é que importa, carrega Júpiter, uma densa e colossal massa de fumaça repousando na inóspita e fria galáxia.

Quarenta e quatro anos. Suspira. Quarenta e quatro anos, ele faz ecoar no profundo arco da cavidade craniana, Quarenta e quatro anos e até agora eu reuni mais dissabores do que êxitos, minha casa é uma coleção das memórias incrustadas nas intermináveis camadas de tinta — uma original, uma ainda mais anciã, as demais demãos cheirando às cervejas do poente, aos suores dos anoiteceres, aos olhos escancarados dos dormires inconstantes.

Ele tem uma ideia genial que evanesce na promessa da sua feitura, a grande cilada dos narcóticos.

Para sob um poste para acender mais um mata-pulmões, sua sombra se esconde com medo de ser flagrada em sua companhia. Um doce garoto com olheiras cuja envergadura e profundidade nenhuma teoria poderia prever, nenhum matemático poderia aventar, enfim, esse doce pedaço de paraíso desenhado por Alan Poe o interpela. — Que um homem daquele não tinha que estar sozinho, que ele desse um cigarro, porque sabe como é, eu sou de Mauá, as coisas tão fodas, deixei minha namorada e vim ver o que rolava, e tudo bem, qualquer coisa estamos à disposição, tem padê se te pilhar, senão então faz assim, ó, me dá mais um cigarro que não tem perigo, se qualquer um desses putos mexer contigo me chama, meu nome é.

O nome dele é. Não que ele não fosse capaz de lembrar. É verdade, e ele jamais negaria se um dia lhe interpelassem nesse grau de profundidade, que desenvolvera com primazia, no curso da sua odisseia boêmia, a capacidade de decorar nomes por uma noite. Até hoje, eventualmente, ele é fisicamente flagrado — e seu nome maculado –, no risca-faca do Arouche, no pub da Consolação, no basement ou no rooftop, e até no boiler room, maquiado ou vestido, florido ou opaco. Segue adiante.

Renan, alguém grita esse nome que é tão seu. Alguém gritou. Tenho certeza, ele também tem, sentimos ecoando — até a moça ali na esquina da General Jardim estremeceu. Mas acho que não, acho que foi impressão mesmo, e que coisa feia, será que eu já tô na idade de ficar ouvindo vozes? será que eu procuro ajuda nisso aí? Ideia abandonada em segundos, tão arraigada quanto o devir desastrado dos passos que insistem porque não têm opção. Anticlímax total esse tal desse grito, esse eco sem gruta.

Talvez fosse um certo narcisismo desesperado. Depois de certa idade seu nome é menos solicitado, isso é fato. Mas a impressão ficou lá, como a sombra impressionista do seu quase-andar na míope visão dos supostos olhos escondidos no ângulo oculto.

Pronto. Acabara a Bento Freitas e agora fitava em apressado desânimo a placa da rua. Então era esse seu nome… Havia muitos passos a serem dados, e talvez alguns cigarros acesos até o terminal. Mas a bebedeira é generosa. Ela dirime nosso sofrimento, quando o revisitamos. Paira indecisa a ideia antes de atravessar o largo, embora se saiba exatamente o que fazer. A ideia ricocheteia e medita.

Quem, se pergunta, Quem, afinal, foi Bento Freitas?

Texto produzido no âmbito de uma oficina voltada à Literatura LGBTQ+ orientada por jaircozta.

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Alan Turing morreu com seios

_antropólogo, barista informal, errante incorrigível, cantor de karaokê, sérião nas horas vagas