_Quase Ainda

_farsa em quatro atos

_erinhoos
Alan Turing morreu com seios
5 min readMar 9, 2022

--

no Museu de Arte Sacra dos Jesuítas em Embu das Artes tem um Jesus-mártir descabelado todo escalavrado que guarda verde-antipático no seu cenho um acérrimo desgosto — o do arrependimento de ter autorizado a humanidade. empedernido e perplexo, só lhe resta observar e guardar com monotonia senoidal o desfile da mediocridade a que seus ocres e inumanos mortos olhos são consuetudinariamente expostos.

pois bem…

(1) a estaca

o soar quase inteligível da clarineta, o olhar por sobre a poeira na janela exausta, Ainda chegando suado e absurdo, no passo obsoleto dos estapafúrdios de uma infância ultrapassada.

— Pra variar, né? — diz Quase, fingindo estar absorto nos seus bemóis e fermatas, tentando fazer coro à reprovação empinada no fulgoroso olhar do regente. por dentro todo o set de metais armados, a fanfarra borbulhante, orquestra de câmara em Woodstock, Paganini sumindo na esquina ao som da derradeira corda, o clímax irresponsável de A day in the life.

— Se liga, foi a gata!

— Sei. — pausa colcheia melancolicamente descompromissada. — Página seis.

a gata. Ágata. agá, tá?, Quase meditava ensimesmado para distrair-se dessa estranha tristeza pulsante enquanto tocava a mesma linha pela vigésima segunda vez. pausa geral para passar os paquidérmicos metais. todo mundo sabe que é o Galego que desafina sempre, por que faz todo mundo repetir se todo mundo sabe que é só ele, isso é um saco. … gata, né? gata … Quase olhou melancólico para Ainda através do insatisfeito reflexo da meridional quina prateabunda da estante de onde pendiam as tristes páginas de John Williams.

a insuportabilidade de um encontrar rarefeito de olhares rastejantes.

chega!. eu acho, eu preciso, eu acho, eu preciso…

— Vem cá! — o ouvido em pé — Eu acho, eu preciso…

— Xiu — alguém.

xiu!

muniu-se, carga tinta linha partitura paixão,

ow, é segunda, bora dar 1 2 no átrio

da sombra, canto de olho, sobra de luz, vislumbrou-se a erigir-se maculosa a saliência divina dos infelizes, o pesadelo dos eunucos, grave e em riste, a ereção, como jamais sentida pelas pupilas. o pau: litúrgico, duro e pontual.

piscada de esguelha de o yea bb.

(2) o átrio

assim conhecido por ambos, desde os faustos e fátuos tempos do Fundamental: Pátio das Almas, o exagerado jardim abandonado às segundas com sua escalafobética insígnia jesuítica talhada a enxada e cal no seu seio.

um azul besta.

— Companhia de Jesus.

— Que é, doido?

— A gente tá na companhia de quem? De Jesus.

risadas cúmplices e desajeitadas.

— Mas só fala bosta mesmo.

fumaça doce palo santo se escondendo no céu do recreio.

Ainda sente falta. delira preenchê-la com passos opacos. ruma adentro, range surdo.

— Que cê tá fazendo?

— Mano tô vendo se tá aberto.

— Pra quê cuzão? … Nossa cê é louco!

— Xiu!

xiu.

— Não dá pala vamo pra alcova.

— Pra quê se eu tô vivo? — saiu Quase correndo pelos corredores, cacetando escada, barulho cansado de degrau espancado. Passos hesitantes.— Nossa olha que coisa feia.

— O quê? — Ainda vencia a distância e resfolegava o platô sem cérebro nem vida.

— Olha! — apontou Quase com a fanfarronice.

— Calaboca cê vai pro inferno!

— Véi é de cabelo humano essa porra!

— Foda-se vambora vem logo!

— Cabelo humano bicho!

— Mano para quéto ôndcêvai?

— Xiu!— súbito Quase. Congela interpelando escaldado o outro, que responde em rallentando.

— Quê?

— Esse som?

— Que som?

não havia som até a sentença.

não. havia. som. nenhum. até. a. sentença.

mas então Quase e Ainda se assaltaram a imagem — se olharam profundamente — se perceberam um ao outro e o som passou a existir como soasse tão e somente da eletricidade que ali inospitamente se deflagrava. choque de desvairada e rigorosa mirada. à medida da penetração entre os castanhos, suavam as paredes, cheiravam os incensários, abriam-se as urnas, uivavam as madeiras… avolumava-se no aposento a música — violava as silhuetas e tocava feito instrumento os corpos de ambos como um arco invisível a produzir arrepios, como um theremin fantasmático executado por um Cupido errabundo.

(3) o sacramento

a mancha inundação purulenta ia tomando tímida como uma várzea a relva moletom.

— Vem vamo dançá.

as calotas do chão rangiam conforme ambos — Quase e Ainda — se enredavam na cadência trôpega dos ébrios apaixonados, provocando o estrado em um bailado desastrado de taverna com aquela música que ninguém ouvia senão eles próprios.

giraram tanto, mas tanto, e o Sol só começou a se pôr naquele dia por força desse ímpeto.

e caíram premeditosos e febris por sobre um franciscano leito, um no qual ninguém deitava desde há duzentos e talvez mais anos — com exceção dos fantasmas e seus ácaros. e arfaram quentes e impalpáveis, cambiando perdigotos e faíscas e se respiraram sem desafiar o sagrado ali instaurado.

e assaltados por canábica e antiga fúria despiram-se dos forçados hábitos calça skinny apertada e talharam os sexos por sobre os sudários da pressa e se confundiram em lamacento ardor. a rede do augusto berço se foi desfiando aos poucos, como se o chão se abrisse ninho para abrigar a conjunção das inflamadas almas.

e fez-se então o verbo amor. e foi de Ainda.

no lar mão de Quase rompeu-se honesto um açude formando um atol brancacento por entre as veias e pelos de seu antebraço retesado. era Ainda que se fazia além no infinito da sua co-extensão.

uma lágrima voou pulga de cada olho, para ser a vez do outro.

ao cerrar impávido da pálida pálpebra, Quase foi levado para a flutuação frenética do vácuo no espaço sideral com o alucinado giroscópio anfetamínico ouvindo a docemente áspera polifonia dos monges beneditinos, as harpias em trítono e o distante Quatuor Pour la Fin du Temps em um piano desarmado de western spaghetti.

(4) a redenção

tesos, sanguíneos e paralisados, ali ficaram como se fossem décadas.

uma clareira se abriu do céu resplandecente espectral a derramar bênçãos flácidas e displicentes por sobre os imaculados escalpos.

QuaseAinda.

AindaQuase.

riram o absurdo e cochilaram o banal.

naquela tarde luz-damasco sorriu descabelado o Jesus-mártir.

Fonte.

--

--

_erinhoos
Alan Turing morreu com seios

_antropólogo, barista informal, errante incorrigível, cantor de karaokê, sérião nas horas vagas