_uma história;

_erinhoos
Alan Turing morreu com seios
3 min readJun 18, 2024

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O meu cérebro tá cada vez mais derretido por causa do álcool, sabe, eu lia essas coisas do Bukowski quando era adolescente, jovens pequenos-burgueses não deveriam ler essas merdas de banca de jornal, eu juro que não beberia tanto senão fosse essa merda do Chinaski, eu juro, me tornei uma princesa consumista pseudo-beatnik, eu me pareço hoje em dia muito mais com um Zé Buceta fracassado umbigo-de-balcão do que com um revolucionário com o mínimo de procedência, é isso, eu sou improcedente, fui paulatinamente a cada copo descendo a escada do frescor-tipo-exportação rumo à escada de emergência, me atirei, rolei escada abaixo, estou rolando, meu cérebro está cozido, eu penso a todo instante que um fodido vai meter uma chave Phillips em mim, eu vou sair todo furado, parecendo um queijo suíço, e oscilo esse pensamento com a ideia de que, na verdade, nenhum fodido vai querer me picar e distribuir em valises na Praça João Mendes, porque o verdadeiro fodido sou eu, e a minha carne e os meus órgãos e as minhas vísceras e a minha conta bancária e os meus livros não interessam a ninguém, são pútridos, ofensivos, ou pior, são irrelevantes, e é isso que o John Fante e o Bukowski fizeram comigo, eles me deixaram improcedente e irrelevante, com o humor esquálido e um cérebro com miolos cheios de sujeira nos vincos, sulcos enferrujados, meu crânio é uma verdadeira lata de atum, eu não sou um cabeça-de-bagre, eu sou o próprio bagre, rotundo, maníaco, assustador, um bagre de um lago sujo, um bagre do esgoto do Tietê, o meu cérebro é um atum ralado e o meu sangue é o esgoto do rio Tietê, o John Fante e o Bukowski e o Jack Kerouac fritaram o meu cérebro numa frigideira corroída e untada de petróleo de soja da Praça da Liberdade, inocularam no meu cérebro a estúpida ideia de que uma vida cool era uma vida de misoginia, alcoolismo, endividamento, árida de escrúpulos, uma vida de um bagre Zé Buceta improcedente e irrelevante, de reflexos bêbados e modos torpes, uma verdadeira antologia de predicados inadequados, o protótipo do caráter duvidoso, que lindo esse caráter duvidoso, como ele é bonito nos livros do John Fante e do Bukowski e do Jack Kerouac e do Allen Ginsberg, e no fundo é exatamente isso, o cérebro frito de uma bicha sequelada de descargas elétricas nas têmporas, igual a um Lou Reed paulistano, e eu talvez devesse ter feito como os outros, deveria ter lido Paulo Coelho e Carla Madeira, deveria cultivar simpatia pelo horóscopo, deveria ter feito uma graduação, deveria me esforçar para parecer um tipo que representasse um decoro de qualquer ordem, não deveria ter bebido o dinheiro que o pulha do meu pai deixou, hoje estou sem o dinheiro, sem o meu pai e em breve minha liberdade evapora junto com a última gota de cerveja deste copo enquanto o meu cérebro entra em combustão, sumindo pouco a pouco, virando cinzas, virando ausência, virando nada.

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_erinhoos
Alan Turing morreu com seios

_antropólogo, barista informal, errante incorrigível, cantor de karaokê, sérião nas horas vagas