“Civilização e Cultura” Jesús Sepúlveda
Capítulo 24 de “O Jardim das Peculiaridades”
“Em 1987, J. A. Lagos Nilsson publicou em Buenos Aires o manifesto anarquista ‘Contracultura e provocação’, em oposição aos batidos termos cultura e civilização utilizados pelas ditaduras do cone sul para auto-justificar e racionalizar suas práticas genocidas. Para Lagos Nilsson o mundo cultural é um modelo, um padrão, um marco ou uma referência: é o que padroniza. Assim, a cultura padronizada e a civilização são o produto da expansão da razão instrumental, que psicologicamente se manifesta como projeção do ego sobre a natureza. A alienação produz o estranhamento do sujeito no mundo, que se volta estranho ao externo e a si mesmo. Essa é a doença transmitida no tubo da ideologia. E, nesse redemoinho, só a arte e a poesia liberam e desalienam. Dito ato liberador tem suas raízes na contracultura, que não é senão uma forma de provocação significativa. Por óbvias razões, a contracultura nega a cultura oficial e advoga pelo direito à peculiaridade. Evidentemente, a contracultura não pactua nem convive com o poder, ainda que este trate de cooptá-la. Se o consegue, a contracultura torna-se um puro fetiche de consumo, ou um artigo de museu que o poder pendura na lapela de sua jaqueta como se fosse uma medalha de guerra.
O poder se perpetua através do exercício repressivo e da doença da alienação. Conquanto esta seja uma prática do simbólico, não é necessariamente expressão da cultura simbólica. A diferença entre o simbólico e a cultura simbólica permite distinguir entre a representação e a substituição reificadora da realidade e a manifestação estética do ser. Confundir civilização com cultura significa misturar duas manifestações eqüidistantes. A civilização é a projeção da razão instrumental. Sua expressão sublime são as cidades que, legitimadas como segunda natureza, organizam o processo de treinamento ideológico e social nos modernos campos de concentração subliminais. A cultura, em mudança, quando emana do sujeito é uma forma de ser, ou uma contracultura. A cultura se auto-regula por meio da interação do ser. Pelo contrário, na civilização, cujo tabuleiro de interação é o mercado, não existem verdadeiros mecanismos auto-regulatórios, já que sua base de apoio é a utilidade, o ganho ou o lucro. A civilização é, por tanto, unidimensional. Ao invés disso, a cultura é múltipla, peculiar e multifacetada. O que orienta as formas de manifestação cultural é o ser. O fazer se relaciona à manipulação e à produção. E ainda que também possa ser um ato de criação, está profundamente unido à operatividade instrumental. O ser e a criação entretecem a fibra da cultura. Em rigor, todos temos cultura, isto é, uma forma de ser. E conquanto a cultura mediatize nossa experiência, nosso ser é cultural.
A luta dos povos originários na América Latina não é senão a luta pela defesa de suas culturas contra a penetração da máquina civilizadora e a cultura padronizada. A cultura de um povo é a manifestação estética de seu ser comunitário. Essa é sua cultura simbólica. Os Neanderthal, desaparecidos faz aproximadamente uns trinta mil anos, poliram figuras de pedra e construíram flautas talhadas em ossos de ursos, capazes de tocar até três notas musicais: do, re, mi. Também contaram com uma forma de comunicação e com atividades espirituais e artísticas. A cultura simbólica não necessariamente conduz a uma auto-estrada civilizadora sem saída. Os maias, por exemplo, abandonaram suas cidades sem explicação alguma. É provável que tenham entendido em algum momento que sua civilização era insustentável, ainda que não haja provas concretas disso. É possível, também, que tenham tido consciência plena de que sua tecnologia se desenvolveria de um modo tão drástico que não teriam sido capazes de retribuir à terra tudo quanto lhe tiverem extirpado. Esta cosmologia da retribuição ainda faz parte da cultura simbólica atual maia, cujo entendimento da natureza ultrapassa com distância às cosmologias modernas ocidentais.
Ao contrário da cultura maia, a civilização ocidental e suas réplicas não provocaram senão a destruição acelerada da natureza. Quando Marcuse propõe que a história nega a natureza, refere-se à cultura civilizadora — à padronização — e não à cultura humana como expressão do ser. A manifestação do ser é estética e cultural. Essa manifestação se radicaliza quando se torna expressão peculiar do ser. Por isso, negar a uma pessoa sua forma de ser, é colonizá-la. Dita prática reproduz a impulsão expansiva da civilização, que não é senão a destruição da natureza e dos seres humanos. A civilização, portanto, coloniza a cultura e a domestica, fazendo-lhe uma categoria regular: a cultura oficial. Desconhecer que cada criatura no planeta tem uma forma de ser: cada gato, cada ave, cada planta, cada flor, nós mesmos, é negar a peculiaridade da natureza. Negar a cultura é padronizar. Os seres humanos temos diferentes formas de ser. Cada qual vê o mundo, sente-o e o aprecia culturalmente. Cada cultura é peculiar. As constelações de peculiaridades são formas culturais que devêm nas idiossincrasias dos sujeitos.
Os genocídios e ecocídios no norte e sul do continente americano tiveram uma linha diretriz: negar a cultura indígena. A cultura, portanto, se contrapõe à civilização. Não são sinônimos, mas territórios diferentes. A civilização implica padronização; a cultura, peculiaridade.”
— Jesús Sepúlveda
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