O Futebol Como Memória

Alessandro Caldeira
Ale Calldeira
Published in
6 min readAug 15, 2020

“Eu fugia dos olhos apreensivos da minha família e ia encontrar Rivelino no quintal do vizinho; escondida, descobri um camisa 10 além do Pelé”.

Ao contrário dos meus amigos que possuem a maior facilidade para lembrar da infância, fico todo crispado quando alguém quando alguém tem lembranças de sua puerícia.

Quando me perguntam como foi a minha infância, finjo uma cara de quem está descobrindo algo guardado, encolho-me de tanto que me esforço, mas não há nenhuma resposta.

Só que, como um doente, a pergunta se repete na minha cabeça: Como foi a sua infância? Como foi a sua infância? Como foi a sua infância? Quanta humilhação é não lembrar que nasceu! Pior é a sensação de ter gerado a mim próprio.

Uma vez conheci uma senhora que não se lembrava de quase nada da sua vida. Foi a primeira vez que havia me deparado com alguém que era portadora do Alzheimer.

Aquela senhora, de pele alva e ossos quebradiços foi a minha primeira irmã. Como sou filho único, decidi que todos que mostravam uma memória debilitada e a tinha como um estorvo, seria meus irmãos; irmãos de esquecimento.

A raiva me foi virulenta, porém, quando o filho dela ligou em casa: aconteceu algo tão bonito! Minha mãe se lembrou do seu passado e nos contou história. O filho estava radiante e convidou todo nós para um jantar com a sua família

Quando chegamos para o jantar, toda a casa adquirira uma tonalidade cintilante onde dava-se para notar a claridade emanando às bordas de seu corpo. Quanto a mim, apenas o quarto da sua mãe e o desespero que me tomava esperando saber de seu filho como perdi a minha irmã para a lembrança.

Ele encosta na Nossa Senhora repousada na estante e coberta com um manto felpudo (dias depois descobrira que estava bordado com o símbolo do Corinthians); segurando a ponta do tecido, ele começa a nos contar, tremulo e reluzente: o Corinthians de Rivelino recuperou, por um instante, a memória da minha mãe.

E aquele homem se enche de euforia, anda de um lado para o outro no meio da sala, a luz que perfurava a janela se atina em seu rosto e começa a balançar como folha seca.

Continuou: liguei a TV na Cultura; sabe o programa que passa jogos antigos? Para a minha sorte, estavam transmitindo o Corinthians dos anos 70. Corri para o seu quarto e falei, como a um menino pio, bem baixinho no seu ouvido: a senhora vai adorar a TV hoje. (No meio da sala, ele imitava com maestria o gesto que fizera para conduzir a sua mãe á poltrona)

- Sabe o que ela me contou? Quanto desespero nos olhos daquele homem, senti uma piedade que quase me enfraqueceu, até que revelou: me contou dos tempos em que via o velho Riva matando os goleiros com a sua patada atômica.

Parou na frente de todos que estavam observando, sempre atento, á sua interpretação no centro da sala: ela exclamou com o sorriso leve de alguém que está revivendo: “eu fugia dos olhos apreensivos da minha família e ia encontrar Rivelino no quintal do vizinho; escondida, descobri um camisa 10 além do Pelé.

Saltava de alegria e as suas pernas compridas o ajudavam a alcançar o céu; apertou o manto disposto sobre o corpo da santa e, como se fazendo uma oração, prometeu: eu gravei aquele jogo e todos os dias, no mesmo horário, irei assistir com ela na esperança de que a minha mãe volte a falar de si mesma.

Chegando em casa, eu declarei para os meus pais: quero ser jogador de futebol. Arrancava o vestido da minha mãe dependurando o meu pedido na barra de sua roupa.

Acredito que a minha primeira profissão foi essa: encher o saco da minha mãe com sonhos. Minto. Havia, ainda, algo maior, que era a tarefa de não passar fome.

Quase toda quarta encontrávamos leite em casa e bebíamos como uns selvagens. Às vezes, eu conseguia correr antes que o leiteiro chegasse em casa, e implorava, com a boca aberta: despeja. Matava afogada a minha fome.

Certa vez, tentando achar uma época no qual não dependíamos do leiteiro para sobreviver, entrei no quarto da minha mae e remexi algumas fotos antigas. Encontrei uma fotografia onde estava posando com uma bola debaixo do braço.

Tinha mais ou menos uns 10 anos e recobrei a memória da minha infância, como a mãe do nosso amigo, mais uma vez, me senti irmão dela.

Mas, preciso dizer, minha carreira coo jogador passou de maneira instantânea. É que quando entrava no jogo o meu interesse era a torcida e me distraía.

À noite, sepultava as dores nas pernas em cima do colo de meu pai. Ele, ao invés de me perguntar sobre a escola, sondava a minha memória fazendo-me perguntas sobre futebol. Reparando as minhas lembranças, eu voava como um balão no abraço quente do meu pai.

Sempre tentava me fazer palmeirense, me recobrava: e o Palmeiras de 99, o que achou? Listava alguns jogadores para ver se reparava em algum brilho no meu olhar: Arce, Alex, Cesar Sampaio, Paulo Nunes.

Ele sabia que eu gostava desses jogadores, principalmente o Arce e o Paulo Nunes. O Arce, pelas faltas, onde a bola flutuava como um pássaro e não havia nenhum predador. Paulo Nunes eu só gostava pela rebeldia. Atacava o campo adversário como ataco o leiteiro no portão de casa; como um cão.

Meu pai, ainda avaliando a minha memória, quer saber de um jogo que me recordo do seu time.

Respondo: Palmeiras 3 a 0 River Plate. Esse foi o jogo em que eu descobri o Alex na semifinal da libertadores. O chute do camisa 10 era especial, sempre no canto, com todo cuidado, como banho morno para baixar a febre. Além disso, era o único chute que tinha sabor de sombra fresca batendo no rosto.

Meu pai se divertia com o modo no qual enxergava o jogo: um dia você será um grande jogador… e palmeirense.

Mal sabia ele que a minha paixão estava se tornando a torcida. Assim como a mãe de nosso amigo, eu queria ser capaz de lembrar da minha infância assistindo a um grande jogo de futebol.

Nenhuma fome irremediável, nenhuma fé virulenta havia de estragar a memória restabelecida através do futebol.

Em 2005, já com meus 15 anos, o filho de nossa amiga nos ligou convidando para um almoço em sua casa.

Era dia de jogo: Corinthians x Santos. Eu, santista que sou, ao invés de me encolher a cada piada, engrandecia a cada gol do adversário.

Primeiro, porque havia descoberto alguém mais rebelde que Paulo Nunes: era Carlos Tevez.

Que fúria de jogador; impossível ser dócil, quieto e inteligível com o argentino. Ate meu pai gritava gol olhando para mim com um sorriso largo e usando dos dedos o contador de placar do estádio.

Tevez eternizava o tango, o bolero, o sapateado com as suas comemorações. Tevez eternizara a dança naquela partida.

7 a 1; e o final de jogo foi o arrebatamento de meu pai olhando para a minha expressão que viajava aos movimentos titubeantes de alegria do filho até o quarto da mãe enferma (meu principal interesse).

Assim, todos foram comemorar com ela e o filho, sempre vigilante, percebeu que os lábios de sua mãe batiam contra o outro, pronunciando: Zenon, Sócrates, Rivelino e Teleco.

O filho descobre o corpo da santa na estante, enrola o manto em seu torso ralo, beija-lhe a testa e assegura: a mim, sempre competirá a responsabilidade de abrir a sua memória com o estado eufórico de nosso futebol.

Ainda não havia proferido uma palavra naquele dia, mas saí satisfeito, recôndito e cálido.

A minha maior referência, ao contrario de meus amigos, não foi a de uma infância saturada de memória acordada onde tudo invade. Mas, de lembranças que respingam e penetram no crânio, com a ajuda de Jorge e dona Clarissa, sua mãe e a minha irmã de esquecimento.

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