Todo Silencio É Casto

Alessandro Caldeira
Ale Calldeira
Published in
3 min readAug 12, 2020

Lembro-me de uma época onde disparei contra o diretor de um jornal: o que você escreve é vergonhoso! Assim, com toda fúria, porém, com placidez de um assassino universal que aumenta a reputação quando o som do projétil é testemunhado.

A verdade é que não tive nenhum critério para a ofensa, a primeira publicação que surgisse já estaria pronto para golpear, machucar e ferir cada palavra das folhas daquele jornal.

Nesse momento, me imagino indo até o jornal, mastigando as suas paginas e cuspindo na cara de cada um, fosse jornalista ou não. Só me interessava mostrar o meu desprezo.

O que ocorreu, mais tarde, foi que todo já sabiam do meu descarregamento contra tal jornal.

Os jornalistas, os repórteres, até os faxineiros, qualquer um foi avisado que era contra a existência daquele lugar.

Meses depois, já desempregado, ouvi de um deles: não podemos te contratar, você ofendeu nosso jornal.

Confesso que ensaiei uma revolta shakespeariana e acreditei que quisesse ir até a casa do diretor, a pontapés, dizer-lhe: você é o retrato do seu jornal, um fraco.

De repente, para o meu espanto, comecei a rir, a dar gargalhadas e, por um instante me senti febril como Raskolnikov, porem, não parava de contar as piores piadas sobre a situação.

Percebi que a minha ofensa ainda estava na estrutura do jornal. Pensei, de forma gloriosa: minha cólera foi mais importante do que todas as edições do seu jornal.

Levantei a minha análise, como a um troféu e agasalhei-me em seu conforto.

Mas, permitam-me dizer: o silencio é o único bem remunerado em nossos tempos.

Até hoje, quando conhecidos me param na rua, fazem questão de me esclarecer: se não tivesse causado aquele disparate, não estaria quase morrendo de fome. Eis o que ninguém confessa: a glória é mais dilacerante do que a fome.

Naquele momento, nada mais existia. Apenas eu, só eu era importante e a ofensa foi a única forma que encontrei de me sentir um profissional. No entanto, a única verdade pura e justa é a seguinte: só o silencio é santo.

Agora, finalmente, podemos nos voltar para o futebol: quantos de vocês não sentem vontade de matar o jogador que erra o passe ou o gol que poderia dar a vitória ou, ao menos, recolocar o time no jogo.

Qualquer torcida tem vontade de fazer justiça a que lhe é injusto com a sua alegria. E a ofensa maior para todo torcedor é o gol perdido do perna de pau.

Por isso, o jogo na Vila Belmiro foi um caso para restabelecer a fé para todo jogador. Explico: os gols perdidos (inclusive o pênalti mal batido) pela equipe santista foram dignos de humilhação; no entanto, houve o silencio consolador das cadeiras vazias.

Uribe, Sanchez e Soteldo foram salvos pelo silencio. Nenhum deles tiveram medo de seus gols perdidos. Se quisessem, poderiam se juntar e planejar mais cinco, seis, sete, até dez gols perdidos.

Ninguém mais iria contra os seus defeitos, ninguém mais denunciaria a humilhação dos seus gols feitos; perdidos. Agora, o silencio acolherão a todos, eternamente.

Vejam o caso de Gerson, o Canhotinha, estava espumando indignado com o futebol praticado pelo Flamengo. Segundo ele, seu time (Gerson torce para tantos) jogou como se fosse um treinamento. Observação, a qual, concordei.

Em contrapartida, um jornalista urra em cima da cara do craque: é um idiota! A impressão é que todas as obscenidades que o jornalista que jornalista conhecia, havia guardado para o Canhota.

Então, me questiono, admirado, (e um tanto pornográfico): Como Gerson não se rebela contra a injúria? Por que não assume que está correto, que o Flamengo fez, sim, seu primeiro teste com o novo técnico justamente no Brasileiro, perdeu o meio campo e, no fundo, o futebol foi um boxe?

Gerson se manteve esguio, como quando parava a bola e lançava a Pelé e nenhuma resposta ousou para o jornalista.

Nenhum outro jornalista, a partir de então, elucidou as dificuldades do Flamengo, só elogios ao “boxe de futebol”, só elogios. (pois os elogios são as palavras do silencio).

Me senti perdido, apenas isso, perdido. Por fim, concluí: todo silencio é casto.

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