Antimanual de sobrevivência

Alê Garcia
Alê Garcia
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5 min readAug 13, 2018

Uma resenha de "Juventude", de J. M. Coetzee.

Juventude, do sul-africano J. M. Coetzee, é um livro que inevitavelmente entra na clássica definição dos romances de formação. No entanto, subvertendo as fórmulas comumente empregadas nesse gênero, não apresenta episódios espetaculares ou um daqueles acontecimentos epifânicos, capazes de revelar a John, o protagonista, o sentido da vida. Bem pelo contrário. Neste romance autobiográfico, John, estudante sul-africano recém formado em matemática e aspirante à poeta, essencialmente faz isso: aspira. À própria vida, à uma paixão avassaladora, a instantes quaisquer que o livrem do marasmo de um cotidiano onde nada parece corroborar para o seu sonho de escritor. Nesta tentativa, vai para Londres. Como um estrangeiro, no entanto, é um ente entregue somente à sua sorte, que pulula em empregos como programador, tentando sobreviver à insensibilidades destes e procurando encontrar identificação com um país que não é o seu? Mas o que é seu, então? A África do Sul, distante, é um país do qual não lhe interessam nem as notícias que sua mãe lhe envia nas constantes cartas preocupadas. O conflito racial que o regime do apartheid repele com violência, não lhe preocupa, tão distante (e insensível?) é John dos problemas da sua nação de origem.

No meio de Juventude, escrito um pouco antes de Coetzee ganhar o Nobel, John por vezes comove, por outras, irrita. É um ser inseguro, imaturo, indiferente. De um alheamento que o faz quase autista, esperando que lhe caia no colo, romanticamente, o dom, o poema que identificará no mesmo segundo como digno de ser aprovado por Pound, sua referência máxima. Assim como espera que lhe caia a paixão em forma de uma mulher que lhe faça vibrar, desejar, e não através das tantas que trata com descaso, desconsideração — um desinteresse e uma frieza tais que por vezes permeiam a misoginia:

Sua própria explicação para os fracassos no amor, agora velha e cada vez menos confiável, é que ainda tem de encontrar a mulher certa. A mulher certa enxergará, através da superfície opaca que ele apresenta ao mundo, as profundezas interiores, a mulher certa destravará as intensidades ocultas de paixão dentro dele. Até a chegada dessa mulher, até o dia destinado, ele está só passando o tempo. Por isso Marianne pode ser ignorada.

Leituras, vivências, experiências, paixões. Em Juventude, Coetzee não responde à nenhuma destas questões. O que sobram são indagações. De um poeta que não sabe como se construir para alçar o panteão dos “abençoados”. Que adia o momento de pôr no papel os versos que têm em mente com o mesmo desespero com que empurra de sua vida a menina de quem tira a virgindade. John, em essência, é um passivo. Um romântico esperançoso da glória que se deixa arrastar, frustrado mas incapaz de mover uma palha para modificar seu destino ou acalentar algum interesse sequer com paixão. A própria bolsa de mestrado que ganha, na qual escolhe estudar Ford Madox Ford, é uma burocracia a mais, tão somente, tal qual os cartões perfurados no seu emprego-bovino como programador de computador em uma Londres dos anos 60. Tal qual a rotina preguiçosa do pão com linguiça frita a cada jantar.

Narrado em terceira pessoa, Juventude é escrito com precisão, em estilo conciso, seco, quase ingênuo na forma como formula as questões através da voz de John, e da forma como John acha que se tornará escritor. O motivo de sua mudança para Londres não é outro senão submergir nas profundezas, vendo-se ainda mais estático e limitado na Cidade do Cabo. No entanto, não é a mudança que lhe fará bem sucedido nos intentos que ele desconhece como se armam:

Há mais coisas na história infeliz, porém, do que a mera vergonha. Veio a Londres para fazer o que é impossível na África do Sul: explorar as profundezas. Sem descer ao fundo, ninguém pode ser artista. Mas o que exatamente é esse fundo? Achara que caminhar pelas ruas geladas, o coração amortecido de solidão, era estar no fundo. Mas talvez o verdadeiro fundo seja diferente e venha de forma inesperada: numa chama de perversidade contra uma garota nas primeiras horas da manhã, por exemplo. Talvez a profundeza onde quer mergulhar tenha estado dentro dele o tempo todo, encerrada em seu peito: a prundeza da frieza, da insensibilidade, da calhordice. Dar rédea solta a seus pendores, a seus vícios, e depois atormentar a si mesmo, como faz agora, ajuda a qualificá-lo para ser um artista? Não consegue, neste momento, ver como?

O maravilhoso nesta obra de Coetzee, no entanto, está exatamente na frustração: tanto na de John, que frustra sonhos e anseios por covardia própria, como na frustração de expectativas do leitor, que não encontra nenhum manual de vivência, nenhuma bóia a que se agarrar, nenhum guia de formação do escritor, nenhum acontecimento espetacular que vá fazer com que John acorde para o que tanto deseja. Não. O que há em Juventude são os relatos da “província” (Juventude é o segundo romance que compõem as Cenas da vida na província, iniciadas com Cenas de uma vida) de uma vida comezinha, besta, limitada. Se John se deixa levar tão somente para a burocracia de um emprego como programador, que lhe provém o bom salário e uma casa financiada que terminará de pagar em quinze anos, certamente estará distante do seu intento de ser um escritor, livre, à mercê das experiências que certamente o formarão:

Por outro lado, pode fazer as pazes com esse mundo, como vê os homens à sua volta fazerem, um a um: contentando-se com o casamento, com uma casa e um carro, contentando-se com o que a vida tem de realista para oferecer, mergulhando as energias no trabalho. Fica mortificado de ver como o princípio de realidade funciona bem, como, levado pela solidão, o rapaz com espinhas se contenta com a menina de cabelo opaco e pernas pesadas, como todo mundo, por mais improvável que seja, acaba encontrando um par.

Mas, se não sabe como obter as experiências que forjarão seu destino, ou se é covarde demais para isso, (É incompetente demais para levar uma vida de fora-da-lei, comportado demais, medroso demais de ser pego. ) que rumo lhe cabe? A mediocridade? O meio-termo, a insatisfação inacabável com a condição que tem e que, afinal de contas, jamais fará absolutamente nada para modificar.

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Alessandro Garcia é escritor. Autor de A sordidez das pequenas coisas (Não Editora, 2010), finalista do Prêmio Jabuti, segundo colocado no Prêmio Fundação Biblioteca Nacional, com conto traduzido para o espanhol na Revista Machado de Assis, da Fundação Biblioteca Nacional.

Finaliza o romance A Zona da Invisibilidade.

www.alessandrogarcia.com

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Alê Garcia
Alê Garcia

Escritor e criador de conteúdo. Um dos 20 Creators Negros Mais Inovadores do País, segundo a Forbes. www.alegarcia.cc