Jonathans

Alê Garcia
Alê Garcia
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9 min readDec 21, 2016

Uma breve análise intercambiando os perfis dos Jonathans da literatura de língua inglesa. Porque sim.

Jonathan Franzen

foi eleito pela Granta como um dos vinte melhores jovens romancistas americanos. Escreveu a obra-prima As correções, um livro que está em quase todas as listas de melhores romances contemporâneos americanos (e algumas outras listas de “melhores de todos os tempos”), vencedor do National Book Award de Melhor Livro do Ano e que devo ter lido umas trinta e cinco vezes, além de enchê-lo de anotações em dezenas de post-its e ao qual continuamente retorno, fã do virtuosismo do autor, da linguagem rápida e capacidade de ironizar tudo para expor a gravidade das situações. Aguardo de forma maníaca e, sei, nem um pouco contraproducente, a série sobre o livro que a HBO prometeu, embora minha expectativa seja suplantada pela quase certeza de que isto nunca acontecerá, coisa que a HBO e o próprio cotado diretor afirma, a despeito do piloto ter sido parcialmente filmado (embora esta quase certeza vez por outra seja obliterada pelo desejo incomensurável de ver Noah-A-Lula-e-a-Baleia-é-um-dos-melhores-filmes-do-mundo-Baumbach dirigir Maggie Gyllenhaal, Ewan McGregor, Dianne Wiest, Chris Cooper, Greta Gerwig Rhys Ifans nesta que seria — eu sei, tenho certeza disso — uma das melhores adaptações literárias para séries de todos os tempos).

Franzen olha fixo para você.

Franzen, além de protagonistas cuja empatia com o leitor é quase imediata, é capaz ainda de criar alguns personagens secundários que são mencionados pouquíssimas vezes e cujas descrições, mesmo repleta de apelos pop, soam extremamente verossímeis. Seu penúltimo romance é Liberdade (e seu mais recente é Pureza), um calhamaço — ao exemplo de As correções e suas 583 páginas — completamente incensado pela imprensa literária, ansiosa em alcunhar o novo “grande romancista americano” (vide Times, que colocou sua foto na capa abaixo de tal epíteto) já que Pynchon parece ser caudaloso demais para isto. É bem verdade que alguma parte da imprensa insiste em definir Liberdade como uma espécie de “continuação” de As correções, enquanto outros dizem “nhé, é outra coisa”, e que o unificador de ambos é a também sátira à família contemporânea (mais uma família do Meio Oeste americano), a ironia à política (que, neste, se estende dos últimos anos de Clinton aos oito anos de Bush), a antítese republicanos/democratas, a discusão conservadores/liberais, os negócios, como conquistar o sucesso na América, etc. Enfim, toda esta máquina fascinante e questionável que faz os Estados Unidos girar, ser o que é e produzir assunto para as centenas de romances americanos que chegam a cada ano nas livrarias.

Muito diferente da minuciosa lente de aumento com que nos apresentava o casal Lambert em As Correções, no capítulo de abertura daquele romance (com uma calma que remetia a lentidão do idoso casal, com suas pequenas rusgas de convivência tediosa), dedicando um tempo considerável a esmiuçar só eles — e só trechos mais adiante nos apresentando, com parcimônia parecida e detalhismos virtusosos, os outros personagens componentes da trama, em Liberdade, de cara, somos avassalados pelo quadro ágil com que desenha uma parcela da classe média americana. Mais especificamente os moradores de Ramsey Hill, vizinhos em Barrier Street. A trama do livro se concentra em Walter e Patty Berglund e no roqueiro Richard Katz. Mas, em sua primeira parte, denominada “Bons Vizinhos”, ficamos conhecendo os dois primeiros, mais seus filhos Jessica e Joey, além dos vizinhos Connie e Carol Monaghan, Merrie e Seth Paulsen e Blake. Fofocas, intrigas, rusgas, competitividade, disfuncionalidade familiar: está tudo ali. Temperados pelas referências políticas. Um comentário sobre liberalismo aqui, outro sobre reaganismo acolá.

A capa da versão econômica da Companhia das Letras

Franzen é dono de uma narrativa algo intrincada e bastante elegante, clara e que destila erudição, isto é bem verdade. Junto a nomes como Richard Powers, Dave Eggers, Nicole Krauss, Jonathan Safran Foer, David Foster Wallace, Franzen faz parte do que se convencionou chamar pós-pós-modernistas. É uma geração de autores que surgiu disposta a se livrar da ironia, da auto-consciência e metalinguagem que marcaram seus antecessores (autores como Don DeLillo, William Gaddis, John Barth e Thomas Pynchon), valorizando o realismo, o enredo e resgatando a importância de personagens capazes de reter a atenção dos leitores. Adepto tanto da escrita ambiciosa — a busca pela “mot juste” flaubertiana — quanto do modelo que chama de “contratual” (contrato de uma prosa acessível e sedutora com o leitor), Franzen tem a convicção de que seus romances devem ser “edificantes e úteis”. Na sua prolixidade, linearidade e conservadorismo, já declarou que busca abrir a consciência dos leitores e que não acredita “que as pessoas que gostam de ler livro queiram um romance curto.”, o que justifica seus calhamaços soltos mais ou menos de cinco em cinco anos. Uma preocupação que se reflete também em sua produção ensaística, em parte reunida no livro Como ficar sozinho.

Também é verdade, no entanto — e isto já foi assunto de discussões acerca de uma possível pasteurização protagonizada pelas escolas de escrita criativa que são comuns nos Estados Unidos — que a clareza de estilo, a ironia constante, algumas recorrências temáticas tornam sua literatura muita próxima da literatura de

Jonathan Lethem,

que é um contemporâneo e amigo de Franzen, autor de Brooklyn sem pai nem mãe, A fortaleza da solidão (Livro do Ano pelo The New York Times), entre outros. Não obstante o fato de Lethem ter escrito alguns livros de ficção científica e flertado com a literatura de gênero — criando, por exemplo, um detetive com síndrome de Tourette em Brooklyn sem pai nem mãe -, sua literatura realista (e aqui quero ser mais específico: sua prosa) se assemelha bastante à de Jonathan Franzen, com uma limpidez narrativa que não chega a lhe emprestar uma nítida voz própria. Não vou ser inconseqüente de comparar todas as suas obras, mas fazendo um paralelo entre As correções e A fortaleza da solidão — já que foram estes os dois primeiros livros que li dos supracitados autores, e os que mais reli, e os que realmente estudei, e que vieram a me instigar e iniciar as comparações — intrigou-me uma semelhança narrativa muito grande entre os dois, uma assepsia no trato com a linguagem, a utilização de recursos formais bastante conservadores, a ironia constante, a investigação da infância como forma de decifrar o presente de seus personagens, a trama como pano de fundo para delinear o quadro político americano, etc, etc.

Lethem em sua versão mais jovial.

Repleto de referências pop, a começar pelo título, e quase todas elas do universo dos quadrinhos — trazendo à mente o escritor um pouco mais conhecido no Brasil, Michael Chabon, de Garotos Incríveis e As Incríveis Aventuras de Kavalier & Clay — A fortaleza da solidão, de Jonathan Lethem conta a história de amizade de dois garotos que, em comum, só tem três coisas: os nomes de gênios da música, a paixão pela chamada banda desenhada e o fato de serem criados longe de suas mães, por pais fechados em seu próprio universo (e os dois universos repletos da amargura de serem artistas, cada um em seu campo, não-realizados em suas carreiras). De resto, Dylan Ebdus e Mingus Rude são, com o perdão da frase fácil, opostos que se atraem: Dylan, um dos poucos garotos brancos do Brooklyn, importunado quase todos os dias pelos garotos negros do bairro: no começo do livro estamos nos anos 70, quando os ideais da integração racial ainda eram um rascunho em um bairro eminentemente negro e latino; Mingus, o negro bem nascido, filho de ex-cantor de soul, que ao invés de escolher ser mais um dos “agressores” de Dylan, prefere deixar sua marca de outra forma, tornando-se um dos mais ousados grafiteiros do Brooklyn.

Os quadrinhos são o ponto de encontro de Dylan e Mingus — mesmo que a escola, os hábitos sociais e tudo o mais (afinal, era uma época em que qualquer atitude estava repleta de componentes raciais que poderiam se tornar faísca para maiores conflitos) compactuassem para o contrário. E são os quadrinhos de super-heróis, mas também o grafite, o soul, o funk e o hip-hop, que se tornam combustível para a amizade que se estabelece entre os dois.

Capa do livro que, infelizmente, está fora de catálogo no Brasil.

Romance de formação com elementos autobiográficos, A fortaleza da solidão é leitura prazerosa não só pelo ritmo envolvente e extremamente seguro com que Lethem quase que documenta a ocupação do Brooklyn por brancos de classe média e a tensão racial decorrente disto. O livro é também um registro do passado recente estadunidense, flagrando a difícil relação entre negros e brancos em meio a uma busca da prometida integração racial.

Admiro incrivelmente a objetividade, coerência construtiva, competência narrativa, o talento para contar boas histórias com sofisticação e clareza. Ainda que seu estilo me remeta a esta possível “padronização” de que, por vezes, as escolas literárias são acusadas (e quando leio David Means, também amigo de Lethem, autor de Sinistros com fogo,uma belíssima coletânea de contos, isto mais uma vez me vem à tona), a literatura dos dois me agrada muito mais do que a de

Jonathan Coe,

escritor inglês autor de Bem-vindo ao clube, O legado da família Winshaw, A chuva antes de cair, A casa do sono, entre outros. A casa do sono é quase uma narrativa de horror, tão assustadora é a clínica de tratamento do sono criada pelo autor, com um médico disposto a investigar todos os distúrbios com uma obsessão de cientista maluco. A miríade de personagens — narcolépticos, insones, transexuais, entre outros — apresentados em um ir e vir no tempo (no passado a clínica era uma casa de estudantes, diversos dos quais se reencontram no presente do livro), também ostenta um arsenal perturbador de problemas não resolvidos, em um romance que rendeu o Writers Guild, entre outros prêmios para Coe.

Um novelista inglês olha formalmente para você.

Em Bem-vindo ao clube, Jonathan Coe conta a história de quatro amigos na cidade inglesa de Birmingham, no ano de 1973. Colegas de colégio que em um cenário de greves frequentes, revolta juvenil e atentados ao IRA, testemunharam acontecimentos que mudariam para sempre o futuro do seu país. A trilha sonora era o rock progressivo e o livro flerta com o romance de formação. A versão brasileira é um daqueles livros que não comprei pela capa, mas tranquilamente compraria.

Tremendamente inventivo em suas tramas, o mesmo não se pode dizer de seu estilo formal. Coe é econômico, formal e nem um pouco elegante em sua escrita. Parece quase um roteirista na descrição limitadíssima de seus ambientes e personagens. Esta limitação formal é bem distante do que propõe

Jonathan Safran Foer,

americano autor de Tudo se ilumina (que virou filme protagonizado por Elijah Wood) e Extremamente alto & incrivelmente perto, entre outros, sobre o qual não posso me estender muito por não ter lido nenhum de seus livros. Sua contraposição formal a Coe é válida, no entanto, quando observamos uma de suas realizações literárias mais experimentais: Tree of codes, sobre o qual você pode entender mais abaixo:

Alessandro Garcia é escritor. Autor de A sordidez das pequenas coisas (Não Editora, 2010), finalista do Prêmio Jabuti, segundo colocado no Prêmio Fundação Biblioteca Nacional, com conto traduzido para o espanhol na Revista Machado de Assis, da Fundação Biblioteca Nacional.

Finaliza o romance A Zona da Invisibilidade.

www.alessandrogarcia.com

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Alê Garcia
Alê Garcia

Escritor e criador de conteúdo. Um dos 20 Creators Negros Mais Inovadores do País, segundo a Forbes. www.alegarcia.cc