Livros que não comprei pela capa. Mas compraria.

Alê Garcia
Alê Garcia
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8 min readAug 13, 2018

Minha opinião: ótimos livros têm ótimas capas. Diálogo harmonioso entre estética e conteúdo. É a contribuição de um para o outro, uma conversa natural, conseqüência simples de todo um cuidado editorial com uma obra que tem qualidade acima da média e, portanto, merece nada menos que preciosismo também em seu conteúdo gráfico. É o tipo de verdade que tenho para mim e que manterei para todo o sempre. Que vem mais ou menos alinhada à certeza de que a primeira frase de ótimos livros sempre é sensacional. Enfim. Samir Machado, escritor, editor da Não Editora e excelente capista (ganhador do Açorianos, premiação importante em Porto Alegre) mantém o blog Sobrecapas e é capaz de fazer considerações muito mais apropriadas do que eu sobre a relevância e excelência de capas de livros.

Mas o fato é que a iminência da publicação do meu livro me tem trazido tal preocupação. E, à cata de referências, me deparei com uma série de livros em minha estante que são representantes do que considero ótimas capas, projetos gráficos tão bem feitos que seriam capazes de me seduzir unicamente por isto, embora seja fato de que este não foi o motivo de suas aquisições. O que só justifica o primeiro enunciado deste post. Vamos à eles, portanto, com uma série de considerações levianas sobre o porquê de eu considerá-los sensacionais também por suas capas.

Precisamos falar sobre o Kevin, Lionel Shriver. (Intrínseca, capa de warrakloureiro)

O estranhamento é uma das “escolas estéticas” que mais tem me impactado há algum tempo. Sobre ela considero alguns pressupostos teóricos que meu parco conhecimento de semiótica é capaz de me fazer argumentar, e que se amparam mais fortemente na dicotomia entre real/imagiário, natural/a-natural, se estendendo, é claro, até a noção de nonsense, forma mais comumente empregada para tentar se definir esta sensação de “algo errado” que o estranhamente é capaz de produzir. Aqui não é diferente. Sobre o livro sabemos que é um romance no qual a personagem Eva, através de cartas ao seu marido ausente, tenta descobrir as motivações que levaram seu filho, Kevin, a se tornar autor, aos 16 anos, de uma chacina que liquidou sete colegas, uma professora e um servente no ginásio de um colégio dos subúrbios de Nova Iorque. Pronto: temos a trama, e uma vez com ela sob nosso conhecimento, sua capa parece então dialogar mais ou menos diretamente com isto (Kevin, o garoto, deve ser este menino retratado na capa. Este acaba sendo o consenso, quando imaginamos uma menino mais ou menos perturbado em sua infância, entregando os primeiros indícios disto através de sua máscara animalesca e assustadora, perturbardora em sua inadequação ao universo infantil que o corpo frágil que a sustenta sugere). Só conseguimos fazer esta relação, no entanto, quando conhecemos a trama, é óbvio. Mas o que é inquestionável é que há o atrativo por sua capa, tão somente — é uma máscara, uma montagem de uma cabeça de lobo sobre o corpo do menino? Não descartemos a análise do design de fonte: simples, light e discreta, sob o canto esquerdo do livro, algo cerimoniosa, par perfeito ao próprio título. O nome da autora, desconhecida no Brasil já que esta é sua primeira obra a ganhar tradução aqui, ganha corpo menor. É bom também considerar a seriedade que o emprego da fotografia em preto e branco assegura, o que ocorre em 100% dos livros que têm suas capas aqui analisadas.

Bem-vindo ao clube, Jonathan Coe. (Record, capa de Leonardo Iaccarino)

O garoto com o cigarro nos lábios, prestes a ser acendido pela mão que risca o fósforo deve ter entre treze e quatorze anos. E uma criança fumando sempre é chocante. No entanto, seu gesto é interrompido pelo flagrante da câmera que capta sua imagem e denuncia seu movimento. Percebamos, no entanto, seu semblante algo sereno, mesmo que pego em atitude inadequada. Ele parece ter controle da situação, algo reforçado por suas vestimentas, clássicas para um moleque de sua idade. Não é prematuro analisar que toda a atmosfera que rodeia a foto, contribuindo para isto o figurino do garoto, nos faz crer serem crianças européias (sim, podemos saber por antemão que Jonathan Coe é britânico, mas embora isto reforce nossa certeza de não se tratarem de crianças brasileiras — o que poderia ser providenciado por uma capa da versão nacional do livro — é o clima propiciado pela fotografia que nos faz ter quase certeza do pressuposto acima). Ok. ao seu lado, um garoto que deve ter idade próxima: mas seu rosto está crispado, encarando a câmera com fúria, indignado por ter sido flagrado. Em seu bolso, enrolado, algo que pode ser uma cartilha escolar, o que, somado à atitude “inadequada” de um deles estar fumando, gera a dedução de serem moleques aprontando durante o horário de aula ou próximo dele. A foto nos gera uma narrativa que, por si só é extremamente envolvente e forte o bastante para nos despertar a curiosidade para o conteúdo do livro. O título é muito tentador — são boas-vindas a um clube qualquer, um clube de que muito provavelmente os dois moleques da capa fazem parte. Um clube de inadequados, de rebeldes, de caras que “aprontam”? Não sei, mas o texto da contracapa, em suas linhas iniciais é o suficiente para nos situar em que terreno estamos pisando: “Na cidade inglesa de Birmingham, no ano de 1973, a trilha sonora era o rock progressivo, com seus longos solos de guitarra. Nas ruas, greves freqüentes, revolta juvenil e atentados do IRA criava um ambiente propício para o fortalecimento dos setores mais conservadores. (…) Neste cenário conturbado, Jonathan Coe conta a história de quatro amigos. Colegas de colégio que testemunharam acontecimentos drásticos que mudariam para sempre, e para pior, o futuro do seu país.(…)”. Revolta juvenil + ambiente propício: eis o clube. O que mais? A fonte sóbria dos textos na capa assegura a seriedade da saudação, o laranja se destaca sobre a foto em preto e branco, ao mesmo tempo que lhe emprega um frescor juvenil, não obstante sua ótima localização sobre o ponto mais escuro da fotografia, um arquivo oriundo da Getty Images, mas de tamanha relevância e adequação como se tivesse sido produzida tão somente para esta obra. Uma das minhas capas preferidas de todos os tempos.

Este lado do paraíso, F. Scott Fitzgerald. (Cosac & Naify, capa de Raul Loureiro)

Sim, o nome Fitzgerald tem uma força absurda: escritor conceituadíssimo, um clássico de extrema envergadura. A sutileza da grafia de seu nome, nesta capa, contribui para a sofisticação que toda a obra carrega. Edição da Cosac & Naify, aí está o primeiro fator que leva a ter um projeto gráfico irrepreensível. É fato notório o cuidado especial com o design presente nas obras desta casa editorial e aqui não iria ser diferente. Embora minimalista, sua foto única, atrelada ao título nos faz imaginar um momento áureo qualquer, um instante ou localidade em que tudo era tão perfeito que se poderia chamar paraíso. Uma época longínqua (fato assegurado pelo rudimentar capacete protetor do jogador de futebol americano ou rúgbi) que provavelmente a obra irá evocar. O título, com o corpo de fonte só um pouco maior que o nome do autor é em vermelho sobre o preto do uniforme do jogador retratado. Preto e vermelho é minha combinação de cores preferidas, mas, excluído o subjetivismo, o fato de ser uma fonte serifada e de tudo (título + nome do autor) estar composto em uma linha só, favorece o classicismo que a obra pressupõe, uma formalidade que se soma ao nome do autor e que vai ao encontro de seu conteúdo — o retrato de anos de prosperidade e expansão modernizadora durante os anos 20 nos Estados Unidos, “fantasia juvenil, em que as cenas se sucedem rapidamente: uma infância de conforto e privilégio, escola exclusiva, universidade de elite; festas, namoros, clubes, e por fim, um caso de amor mais sério.”

O sonho dos heróis, Adolfo Bioy Casares. (Cosac & Naify, capa de Flávia Castanheira)

Eu poderia me estender infinitamente sobre esta capa. Bioy, sensacional e festejado escritor argentino, merece nada menos que seu nome estampado com gigantismo, assegurando-lhe o caráter de ser chamariz supremo para o livro nas estantes de qualquer livraria. É o tipo de autor cujo nome já é maior que qualquer obra, embora elas sejam fenomenais. Mas, enfim: você comprou um livro do Bioy, não importando se é O sonho dos heróis, ou Histórias fantásticas, ou mesmo A invenção de Morel. Mesmo se o nome estivesse grafado da mesma maneira, mas sobre um fundo totalmente preto isto já seria o bastante. Mas não é o que foi feito aqui, felizmente, porque, partidário da mesma “escola” do estranhamento sobre a qual me estendi acima, aqui temos uma imagem não menos que perturbadora. Pode evocar um instante qualquer de felicidade, pode ser o retrato de um baile inofensivo, uma dança de baile de outrora protagonizada por casal em vestimenta clássica? Pode. Tudo isto e mais um pouco: Mas vamos por partes: o casal está mascarado e recorremos à contracapa para saber que o autor utiliza o “carnaval para facilitar o fantástico”, nos informa em breves linhas um não menos sensacional Jorge Luis Borges, derramado em elogios ao autor: é o bastante para concluirmos ser retrato de um carnaval de épocas passadas, e não é somente o corte clássico de seus figurinos que nos asseguram isto. Poderia ser emulação de antiguidade em um baile de nossos tempos? Talvez. Mas e todo este cuidado contido em uma bengala, cuidadosamente pendurada no braço do homem, e cuja estrutura (afinando-se próximo à parte inferior) não se encontra hoje? E o paletó transpassado, acompanhado pelas luvas brancas? Enfim. Não vou aqui relacionar notas de convencimento: é uma foto antiga e isto é fato. Assim como é fato o quão perturbadora é a máscara escolhida pelo dançarino, que não parece, no entanto, abalar sua comparsa, aberta em um sorriso verdadeiro, ainda que tímido. Sobre a máscara: preta, com uma expressão patética, algo simiesca, é completada por uma espécie de funil sobre a cabeça, um conjunto bastante assustador naqueles e neste tempo. Continuemos, agora voltando às fontes, que é o que nos resta: o nome ‘Bioy’, não obstante estar estourando na capa (com ‘Adolfo’ e ‘Casares’, primeiro e último nomes do autor, alinhados de maneira perfeita à serifa do ‘I’ e do ‘Y’, respectivamente), também está inclinado, o que é uma interpretação gráfica bastante condizente com o universo do autor: literatura fantástica. O incerto, a falta de pruma, a inquietação do movimento inclinado encontram respaldo em sua temática. O título, pequeno e discreto, no canto superior direito: “O sonho dos heróis”, como um enunciado suave, sugerido, em meio ao universo de elucubrações e tentativas de contextualizações que a foto nos sugere.

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Alê Garcia
Alê Garcia

Escritor e criador de conteúdo. Um dos 20 Creators Negros Mais Inovadores do País, segundo a Forbes. www.alegarcia.cc