O grito

Um conto de Natal.

Alê Garcia
Alê Garcia
26 min readDec 25, 2018

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o que tá acontecendo?

a tranca do cinto de segurança pressionada contra seu joelho faz com que suspenda o movimento, incomodado. Ela gira o pescoço, não sentindo mais a pressão dos dedos dele em seu quadril.

nada.

certeza?

aham

nada?

vai, não pára.

só um segundo de pausa, Santiago volta a acomodar o joelho contra o banco, o gelado do couro atravessa a microfibra pouco espessa de sua calça. A penetração — dele nela — surge como um compasso do qual precisa voltar a fazer parte novamente. Como era aguardar a hora certa para ressoar a nota certa do xilofone, quando na banda. O arranhar — dela nele — acontece como resposta a uma hesitação que ele não deveria estar tendo. Mas é o tilintar de seu cinto balançando que o desconcentra novamente. Não que ele se desconcentre fácil, nunca com Melina, mas talvez o pensamento tomasse forma mesmo se concentrado — e então seria pior, a imagem da sua mulher e da sua filha, naquele momento, fundindo-se à sensação de aparar um dos seios de Melina com a mão em concha, ao mesmo tempo em que tenta retornar ao compasso — e a sensação de sentir o seio na mão em concha, mas não da maneira como deveria sentir o seio e sim de forma hiperconsciente, racionalizando sobre o fato de sentir o seio da cunhada na sua mão em concha enquanto sua esposa Martina e a pequena Natália esperam que cheguem com as compras. Como toda a família deve estar esperando, eles que não devem estar fazendo nada mais do que esperar. Só Antunes, que além de esperar provavelmente está girando seu grande cálice de conhaque, tornando a espera mais cerimonial, movimento cadenciado ao de sua filha mais nova só alguns quilômetros longe dali, girando os quadris contra a pélvis de seu cunhado na imensa cabine da L200 e afundando os dedos finos na parte de trás de seu cabelo, um belo corte de cabelo, Erick nunca o decepciona e por isso vale a pena aguardar mesmo quando não marca hora e é preciso folhear uma revista. Ele pensa se o cheiro do seu suor é forte o suficiente para impregnar-se à pele de Melina quando ela esfrega seu rosto contra o pescoço dele

e

haha, vamos?

vamos.

O som da L200 de Santiago, longe, no cascalho que dá acesso à casa ou apenas o som de outro imbecil em outra caminhonete gigantesca cruzando a rua e ostentando seu ignorante apreço por carros desnecessariamente grandes e onerosos. O que era aquilo, uma ceia em família, então? Antunes, três anos mais velho desde a última vez em que precisou permanecer por mais de quatro horas sob o mesmo telhado que Santiago. Ainda firme em torno do pescoço, só a pele mais fina na bolsa sob os olhos e alguém diria que parecem manchas cancerígenas nas mãos, mas está em dia com todos os exames. O zunido de alguma bandeja sobre a bancada de mármore da cozinha compõe trilha para a prévia da grande ceia em família, protagonizada também por Santiago — ele que acaba de fazer a maçaneta girar, entrando à frente de Melina carregada de sacolas, o imbecil que é também um grosseiro. Antunes está às voltas com seu terceiro conhaque, as mãos já tremendo um pouco. Queria arremessar o cálice contra o rosto do genro, ver sua vermelhidão de nitrito de salsicha arroxear-se, corrompendo aquele rico frescor de pele escanhoada, aquela boca de bebê, ele pensa. Vê Dora entrando na sala com a bandeja repleta de sua famosa salada tropical, os braços parecendo finos demais para carregar o peso de picles e batatas e mangas. Tem consciência de que a esposa não gostaria de saber que estava tendo aqueles pensamentos novamente. Por que ainda tem apreço por Santiago e lembrava Antunes sempre que podia sobre a boa escola, e a equitação, o balé, piano, as aulas de inglês — tudo o que fazia questão que a pequena Natália fizesse, sem colocar um dedo sobre o fundo que tinham providenciado à Martina, a filha mais velha deles. Para Antunes, era um predicado do qual ninguém deveria se vangloriar. Martina deve estar agora na cozinha, recebendo as sacolas que sua irmã Melina e o imbecil do seu marido Santiago trouxeram do mercado, e fatiando presunto. Melina, que sempre esquece do que é obrigação sua, e Santiago, com sua tilintante gentileza, fazendo questão de mostrar a todos o quão amável era conduzindo a cunhada esquecida, atrás de nozes e passas e pistaches e esta droga toda para adornar pratos de chester, pensa Antunes. Sua crença sobre uma reunião que só acontecia pela necessidade cênica de aparentar felicidade familiar intensificava-se à mesma proporção que a quantidade de álcool tomava conta de seu sangue. Fora daquele período, compreendido na espécie de vácuo sentimental que forma os últimos oito dias do ano, não precisava encenar civilidade e menear de cabeça toda vez que esbarrava com Santiago em seu caminho — por que fora daqueles oito dias (felizmente intervalados: juntos no Natal — pausa — e novamente juntos para o Ano Novo), há anos não esbarrava com Santiago em seu caminho. Conseguira evitar o constrangimento em família pelo máximo de tempo possível, as viagens para algum lugar quente que, até então, satisfizeram Dora. Agora precisa atender à mística presunção da esposa de que basta uma noite de Natal em família para alguma espécie de sentimento benigno iluminar a todos. E isto implica voltar a olhar novamente Santiago. Não faz nenhuma questão disso e seus sócios tampouco fariam. Só Dora e Martina, e a pequena Natália, porque valia a pena pela pequena Natália, apaziguadoras constantes, lembranças incansáveis — e inúteis — da necessidade de superação, perdão e todos estes sentimentos que obstruem a racionalidade de tal maneira a ponto de anularem seu entendimento da impossibilidade de que estes mesmos sentimentos possam encontrar lugar na mente de um empresário como ele — ou seus sócios — , ainda que anos depois de terem se dado conta do gigantesco buraco em que foram enfiados por confiarem nas opções de investimento (“de risco moderado e previsível, é claro!”) feitas pelo grande imbecil que Santiago era, e é, como profissional financeiro. Engolindo em um só talagaço a última porção de conhaque antes de caminhar em direção ao carrinho de bebidas, lembra da derradeira visita de Santiago à empresa. Um filho da puta elegante, tal qual todos estes autônomos do mercado financeiro com seus tablets, como se com uma vara enfiada no rabo para mantê-lo tão teso, manequim de cara vermelha dentro do seu Desmond Merrion (“Você acredita que nenhuma máquina toca nos tecidos durante o processo inteiro da confecção, Antunes?”). A sede da empresa de Antunes era repleta de madeira por todos os lados. Podia se sentir o cheiro de jacarandá e a escuridão do mobiliário pesado contrastando com a modernidade de Santiago, seu porta-cartões de aço escovado, seu porta-óculos de aço escovado, seu copo térmico Starbucks de aço escovado. Na sala de reuniões, reconhecimentos das entidades comerciais da cidade emoldurados em quadros de osso. Única permissão ao vidro, a comprida mesa de reuniões reunia uma matilha de velhos de ternos com ombros largos demais. Velhos como ele, Antunes; velhos que se julgavam conhecedores de propostas escusas de garotos luminosos e que, até então, tinham certeza de poderem enxergar embustes por detrás de seus finos óculos de leitura. Mas ninguém enxergou e então precisaram encarar aquele garoto seboso, cerimonioso na forma como puxava seu óculos e o sacudia para abrir as hastes, o Tommy Hilfinger estampado na lateral que se notava à milhas de distância, sapato brilhante em destaque no balançar de pernas cruzadas e uma eternidade no molhar os dedos na língua, revirar duas ou três páginas de um maço de folhas antes de jogá-lo ruidosamente sobre a mesa e deter-se sobre seu notebook metálico, apontando para planilhas na tela como quem mostra orgulhoso as fotos do filho pequeno na apresentação da escola.

“É o tipo de negócio em que se entra e do qual quase sempre não se sai ileso”, Santiago estava dizendo, apontando um gráfico 3D em forma de pizza e trocando rapidamente de tela para uma espécie de dashboard, uma porção de números que mudavam constantemente, subindo e descendo acompanhado de sinais negativos e positivos e siglas como DJIA, S&P e VIX informando que algum índice cresceu, algum índice caiu. “Não é exclusividade de vocês, podem ter certeza. Outros também aproveitaram todo este otimismo, e a saúde financeira do país que deixou todo mundo, to-do-mun-do, eufórico. Mas as coisas acontecem assim, catchau! Aquilo simultâneo com isto. É claro que eu entendo. E o que é que eu digo? Normalmente, digo: prudência. Mas o cenário era maravilhoso. Mea culpa? Poderia. Necessário? Não creio. Vocês, é claro, são macacos velhos, sabem que há variantes que não podemos analisar, quanto mais controlar. E, claro, fizeram como recomendei, comprometendo somente uma pequena parte dos seus ativos. Perdas são do jogo. Mas, o que é que há mais pra se falar? Está tudo no relatório. Índices, padrões, razões. É o que faço, o dia todo, e não foi exclusividade de vocês. Fabril, alimentícia, tecnológica, editorial. Um bando de gente, em todas as áreas que vocês podem imaginar, se isto faz vocês se sentirem melhor. Eu acho que deveria.”

Fez-se um silêncio prolongado na sala até exatamente todos os velhos, reunidos em linha em um dos lados da mesa, virarem quase em simultâneo para Antunes. Era seu genro, sua indicação. Sua responsabilidade. E foi ele que Antunes ficou mirando, como quem analisa uma destas obras de arte contemporânea, antes de abrir a boca. Apesar da idade para sê-lo, Santiago não era o filho varão que não tivera. Mesmo com as constantes tentativas, fora consagrado das duas vezes com garotas — e já tinha idade para nem mais lamentar a enormidade de incomodação em todas as faixas etárias, duas vezes, pelas quais passara. Mas o filho varão que não tivera provavelmente estaria naquele momento dando duro no gerenciamento do setor de plástico, no prédio dos fundos, ou já lidando com a exportação, enfurnado em uma pequena sala abafada e negando pedidos pornográficos de descontos dos países asiáticos. Poderia também estar tocando sua própria empresa, camisa arremangada e barriga já proeminente que nunca caberia em um daqueles ternos ajustados, indo buscar às sete os garotos no futebol e os levando até sua casa, para assistirem com o avô a final do campeonato na grande tela de plasma. Este era o filho que não tivera, não um engomado dentro de um terno tão apertado a ponto de ter suas mangas coladas como lycra aos contornos do braços. “O que mais há pra se falar, não é, Santiago?”, Antunes ficou olhando para ele tentando descobrir se além de pós-barba mentolado, alguma humanidade poderia emanar daquele corpo. “Nada. E que é exatamente o que você vai falar pra Natália, quando ela tiver idade suficiente para perguntar o que você fez para impedir a semi-falência da empresa do avô dela. Nada.”, Antunes resmungou. Santiago tinha se levantando e estava lutando contra os botões do paletó ao mesmo tempo em que enfiava o notebook metálico dentro da sua bolsa de couro. “Antunes, não é algo que eu…”. “Santiago”, interrompeu Antunes, “à revelia do que seja que meus sócios tenham pra falar pra você, eu só tenho mais três palavras: vá se foder.” Dito isto, Antunes saiu da sala, batendo a pesada porta de jacarandá atrás de si.

Enquanto a luz piscante dos enfeites do pinheiro, que alguém ligara na sala sem que ele percebesse, refletia no líquido amendoado que voltava a sacudir no seu cálice, Antunes pensava que o que Santiago fizera não fora não tratá-los com a deferência que deveria, considerando-se que empresa seria o maior bem que um dia a pequena Natália herdaria. O que Santiago fizera foi tratá-los como o mais reles dos seus clientes, alguém a quem se chega com um discurso repleto de jargões mercadológicos e que se presume poder riscar da lista de investimentos mal sucedidos, já mirando a próxima pequena indústria — provavelmente a alguns metros daquela — para propor um “investimento de risco moderado e previsível”. O filho da puta se imiscuía de responsabilidade e do fato de sua presença e seus aconselhamentos financeiros só terem sido aceitos como um favor que Antunes fazia à Martina, e ia dormir como se tudo aquilo somente fosse do jogo, e pronto. Para ele, afinal, era tudo número. Principalmente aqueles previamente embolsados pela prestação de seus serviços. Não algumas centenas de funcionários de baixo escalão a quem se deva dirigir com o semblante verdadeiramente condoído antes de dizer que seus serviços não poderão mais ser aproveitados pela empresa, que terá que terceirizar a produção daquele setor por completo, encomendando algumas milhares de remessas de dispositivos plásticos chineses de baixíssima qualidade.

Natália estava sentada no chão colocando algum dos vinis velhos de Natal para rodar no toca-discos que Melina trouxera de uma de suas temporadas em alguma cidade de nome impronunciável do norte europeu. Houve uma espécie de brinde abafado e Martina irrompeu na sala, já erguendo sua taça de vinho tinto, muitos níveis acima da euforia que seria natural àquela hora. “Meu amor”, disse Dora roçando seu pesado blusão de tricô no braço desprotegido de Antunes, “veja como Martina está feliz. Você deveria…”. Antunes só a encarou, evitando que terminasse a frase e voltou a olhar Martina. “É, se vê que ela está verdadeiramente feliz. É isto o que você acha, não é?”. Dora não respondeu e Antunes empreendeu sua marcha até a cozinha, atrás de mais gelo para seu carrinho de bebidas. “Vou providenciar pra que não falte nada nesta festa”, disse ele, erguendo o copo e tentando não soar tão dramático quanto soou. Empurrou a portinhola vai-e-vem que dava acesso à cozinha, quase atropelando Santiago, de costas para ela naquele momento. À sua frente, Melina. Dali se podia ouvir Karen Carpenter e sua voz doce em Merry Christmas, Darling que nem a baixa qualidade do vinil conseguia destruir. Melina permaneceu estática, esgueirando o corpo para a passagem de Antunes. Santiago parecia hesitante entre permanecer ali e entrar na sala. Um garoto perdido, para quem estivesse olhando. “Antunes, eu só…”, tentou falar. “Cala a sua boca, Santiago. Já tive que te ver. Não tenho que te ouvir.”, interrompeu Antunes, levantando a tampa do grande freezer à procura do saco de gelo. Paula, cozinheira da casa desde que Martina e Melina era somente duas meninas, interrompeu o que quer que estivesse fazendo em frente ao fogão fumegante. Emanava pela cozinha o perfume de alguma grande ave sendo assada no forno industrial embutido. O rosto de Paula tinha a compassividade de quem sabe se distanciar mesmo estando a poucos centímetros de seu bufante patrão, que permanecia revirando pacotes congelados para todos os lados. “Seu Antunes: embaixo do pernil”, apontou Paula com o queixo. “O quê, Paula?”. “O gelo, seu Antunes. Embaixo do pacote azul do pernil.”. Só então Antunes se deu conta de estar encarando a grande tilápia congelada, quase meio corpo dentro do freezer, sem lembrar mais o que fora fazer ali. “Claro, o gelo. Obrigado, Paula.”. Seria só um trabalho triste, lidar com toda aquela fartura de comida na casa de um bando de ricos infelizes, com os seus se alegrando com tão pouco, à sua espera em casa. Mas naquela noite, só observando a desolação de Antunes, amortecida com sucessivos cálices de conhaque antes mesmo da ceia, cruzando a portinhola com raiva em direção à sala — e ao notar o silêncio mais do que normal entre um casal de cunhados recolhidos durante tempo mais do que necessário na cozinha — , Paula soube que algo estava para acontecer. Não por que fosse vidente ou sequer acreditasse em premonições. Era por que conhecia aquela família já há tempo demais. E se sabia como se davam os relacionamentos simples, de gente que não tem muito tempo a perder, como seus vizinhos lá na Vila Andrade, tinha sensibilidade ainda mais acentuada para as angústias amorosas burguesas, angústias que espreitara ao longo dos anos, vendo toda espécie de casal, oficial ou não, recolher-se àquela cozinha em busca de alguns míseros instantes à sos que fossem. Então, quando foi Martina que atravessou a portinhola com a grande faca de fatiar presunto na mão e sentido muito mais atento que seu pai — porque só uma taça de vinho — , e colocou seus olhos sobre Santiago e Melina, os dois que ainda continuavam ali como se esperando, como se clamando por atenção, Paula não ficou surpresa vendo a filha mais velha dos Antunes buscar o seu olhar como confirmação — da mesma maneira de quando era só uma menina e buscava seus olhos para traduzir que não, não estava tudo bem, ainda que seu pai dissesse que sim, e ela já tivesse sensibilidade suficiente para compreender que sua mãe na verdade estava lá no canto chorando, não dobrando roupas para colocar na gaveta como queria que parecesse.

O que sabia é que era algo da natureza daquele tipo de família: encontrar problemas onde eles não deveriam existir e tornar tão trágico e novelesco o que se resolveria com meia dúzia de desaforos e tapas na cara. Talvez fosse a falta de contato com a vida de verdade, forçando-os a fazer tudo parecer tão complicado, e toda aquela choradeira, e todo aquele climão. “Os burgueses precisam de drama pra fazer o tempo passar, Paula.”, definia seu pai logo que começou a trabalhar na casa e retornava todo fim de tarde com histórias para contar. “Ou é isso, ou sentar no sofá de couro contando dinheiro. Eles normalmente preferem o drama.” A referência de drama que tinham era uma coletânea de clichês quando se abancavam em frente à caixa mágica à noite, raios catódicos iluminando suas faces e lhes entregando aquela porção de amores não correspondidos, amores proibidos, ódios familiares e vinganças ensandecidas. O pai dela, um interiorano com pretensões socialistas, via as pessoas com mais dinheiro do que eles como egoístas fúteis, e não hesitava em instilar na filha a ideia que não eram merecedores da sorte que tinham, egoístas herdeiros de dinheiro acumulado por gerações. “Quantas destas pessoas fizeram dinheiro com força de trabalho? Todos herdeiros. Vagabundos herdeiros.”. Foi difícil não crescer repleta daqueles conceitos em relação a todos os mais abastados, ainda mais quando a necessidade de ter que trabalhar para eles não se encarregou de desfazê-los. Antunes e Dora foram excessões. Mais ele do que ela, insistindo em passar a mão na cabeça de Santiago. Só ela não via o que o genro fez com a empresa do marido e estava fazendo com a filha mais nova — e deixando de fazer com quem deveria, a esposa. Não era preciso ser gênio para perceber, mas talvez viver menos embotada de antidepressivos ajudasse um pouco. E talvez conseguisse ouvir as ligações de Melina no meio da noite, os choros de Melina a qualquer hora e sua alegria quando a caminhonete embicava na estrada e ela corria até ela, para aquelas fugas no meio da tarde. Talvez na ceia desta noite Dora e Martina se dêem conta. Ficava triste por antecipação ao pensar no que aconteceria quando Martina soubesse. Ou quando decidisse parar de fingir que não sabia.

Mesmo três anos depois, já muito passado o período em que o divórcio fora oficializado e o que lhe restara como recordação era a grande cicatriz na mão esquerda — isto e mais as fotografias sépia de quando as duas eram inseparáveis, minúsculas dentro de suas pesadas roupas de inverno em algum lugar com neve, o rosto de seus pais meio desfocados — , seria do grito que ela e todos se lembrariam ao pensar na noite da ceia. O grito horrorizado de Natália, como se presenciando um monstro, uma ruptura brusca na placidez de que eram feitas as preocupações da menina, mas, ironicamente, uma ilustração perfeita e ápice do momento em que foi dado. Era um daqueles gritos que permanecem nítidos na mente da mesma forma que se consolidam momentos traumáticos, mesmo aqueles que se tentam raspar sob anos de auxílio de sessões e drogas, e se mantêm tesos ainda que com que viagens para lugares nos quais se crê que as memórias não terão fôlego para chegar. Foi neste grito que Melina pensou, alisando a cicatriz que formava uma espécie de V na sua mão, ao recostar-se na poltrona do sobrado em Amalfi onde se instalara e do qual podia mirar o Tirreno e suas embarcações flutuando como pequenos flocos de isopor. O cabelo vermelho ajudava a rejuvenescê-la, ainda mais banhada pelo dourado de que eram feitos aqueles dias. Mas justamente o sol constante era quem contribuía para aqueles minúsculos corrugados que se notava sob os olhos, mas só quando muito próximo. Em volta dela, uma cidade que se desenvolvera subindo as montanhas, casas e edifícios antigos espalhados em meio a plantações de limões sicilianos e um litoral de mar azul de doer os olhos. “É onde o céu se encontra com o oceano. Não dá pra distinguir onde termina um e começa o outro”, dissera-lhe o velho Saul, sócio de seu pai que indicara a casa onde se hospedava. Os dias eram feitos de visitas à Duomo di Sant’Andrea, onde conseguia manter a a tranquilidade, não rezando, mas só mirando o teto em almofadas; e fins de tarde em algum dos cafés, analisando turistas de mocassins brancos e bebericando limoncello — um parêntese reconfortante depois dos primeiros dias no quais a sensação de sufocamento e angústia só eram apaziguados pelo intercalamento de Paroxetina e Zoloft. Depois, ao voltar para casa, uma taça do branco que deixava gelando na velha Smeg e, de seu lugar junto à bay window, ficava olhando o reflexo das luzes no azul marinho da água. Foi naquele anoitecer que o grito lhe veio à mente, signo hediondo da ruptura que então, exatamente então, se deu entre ela e Santiago. Mesmo que depois de outros gritos naquela noite — que vieram de todos, menos de quem mais imaginava ouvir — e de toda a vergonha e desculpas e argumentos não aceitos, muito tempo depois, tivesse havido a tentativa. E estadias em pequenos apartamentos em outras cidades, promessas e choros em meio à tardes de sexo que pareciam capazes de apaziguar tudo, mas que se mostravam não serem mais do que aquilo que eram; houve a tentativa. Um Santiago relutante, mas algumas vezes disposto a tornar possível, transformando em táctil aquele vapor que tinham desde muito antes da fatídica noite de Natal. Mas nada tornou possível. Não por causa da sua irmã, da qual nunca mais ouvira sequer a voz. Talvez por que o táctil não lhes servia, era diferente demais do que estavam acostumados a viver. Talvez por que o que lhes excitasse fosse tão somente a fuga, os espaços cortados no meio de tardes, depois que Santiago se certificava dos compromissos de Martina e tinham o que quisessem para eles — tardes resplandecentes, intercursos solares onde sentiam de tudo, menos culpa. Muito diferente da culpa que veio depois: mesmo ignorando a família que deixavam pra trás, e não tendo como se tornarem mais execráveis aos olhos de seu pai, e mesmo sua mãe, sempre apaziguadora, mas não daquela vez. Ainda assim a culpa era uma entidade presente. Sentimento tão agudo quanto o grito que cortou aquela noite de Natal de forma ainda mais doída que a faca.

Martina passou pelo pai que arremessou-se contra a portinhola vai-e-vem com raiva equivalente à de sua voz, que ela pode ouvir ainda que na sala, onde tentava prestar atenção aos pedidos de sua filha (“Olha que linda esta música, mamãe. Ouve!”) e ao vinil dos Carpenters, mesmo que aquela canção lhe soasse melancólica demais, como aqueles filmes antigos de Natal em stop motion. Que houvesse discussões, era presumível. O pai nunca perdoara Santiago e ela, ao contrário de sua mãe, não tinha esperanças de que ele o fizesse. Não agora, se não o fizera mesmo passado tanto tempo. Só mesmo sua mãe e sua eterna esperança na capacidade de reconciliação para achar que o velho Antunes poderia ceder. Não culpava o pai; mesmo sem ater-se aos detalhes do que realmente se dera — e precisava de algo mais do que entender que os conselhos financeiros de seu marido levaram a empresa à demitir centenas de funcionários e implorar empréstimos para evitar falência? — , e mesmo sendo quem convencera o pai a contratá-lo, parecia que, no fim de tudo, cada detalhe do que acontecera era perfeitamente presumível que acontecesse, tão familiar ao que poderia esperar de Santiago, mesmo que não o quisesse. À si não tinha vergonha de admitir que cada movimento seu, buscando recuperar a imagem profissional de Santiago, era espelho de uma tentativa de melhora que ela imaginava ser possível construir em toda a pessoa dele. Porque esperava que a melhora chegasse a seu âmago, e por fim ele voltasse a se tornar o marido do qual tinha lembrança. Era sua tentativa de evitar que a rachadura, ruído nítido como gelo quebrando, transformasse todo o casamento em erosão. E ignorar sua personalidade e seus hábitos cada vez mais pomposos, também o era. Ternos sob medida, sua coleção de brinquedos eletrônicos: justificava como a estratégia que o marido empregava em prol de sua auto-estima. Assim como os flertes. Porque sabia que era só aquilo e que Santiago precisava de confiança novamente, sentir-se homem; coisa que ela não se sentia com capacidade de ajudar. O que tinha ao seu alcance, indicar-lhe como consultor de seu pai, fazia. Esperava com isso compensar a mulher que, fechada a porta do quarto, tinha consciência de não conseguir mais ser. Sentia-se seca, ausente. Incapaz de contato ou de qualquer outra demonstração de intimidade que não fosse com Natália. E havia uma tristeza relutante só no fato de ter que pensar naquilo sozinha, mas como não pensar? A tristeza era tamanha, e a vergonha ainda maior, que nunca quis buscar ajuda externa. Só de se imaginar, condoída por si mesmo, buscando empatia de algum sujeito condescendente demais, repleto de pós-pós-estudos em comportamentos sexuais em relacionamentos de burgueses de meia idade, sentada no sofá de chenile de alguma sala fatalmente emanando alguma mistura de cigarro com lavanda já a fazia sentir preguiça. E tristeza. E tristeza por se sentir triste demais para encontrar um especialista para aplacar sua tristeza. Então preferia não pensar naquilo. E quando a noite chegava, gostava de achar que tudo estaria bem se ao menos conseguissem assistir a um filme juntos, mesmo que depois pegasse no sono e acordasse no meio da madrugada sabendo que Santiago devia estar em seu escritório, se masturbando com um destes sites de vídeos, retornando para a cama achando que ela não acordara, aconchegando-se no travesseiro voltado contra a parede e sem nunca procurar seu corpo para se encaixar. O distanciamento era culpa sua, tinha certeza — mesmo depois de tanto tempo, sentia como se não tivesse maturidade para fazer uma relação voltar a funcionar. Os conselhos da irmã, de volta após longa viagem, garantiam ao menos risadas no fim de cada noite, e jantares que, ainda que a três, sentia que a aproximavam novamente de Santiago. Notou que ele parecia então mais leve, feliz. E notou também que esta felicidade parecia mais intensa a cada vez que ele retornava, após ter levado sua irmã em casa, nestas viagens que pareciam sempre mais demoradas do que lembrava serem. Mas a rachadura pareceu começar a se fundir. E então, uma taça de vinho quando voltava da casa de Melina e a encontrava ainda acordada, é claro que estava acordada — duas horas e meia com os cotovelos apoiados no balcão de madeira da cozinha, mirando o filete de luz azulado sobre o fogão e transformando em uma bola minúscula o papel alumínio que prensou até decalcar sua mão; e então um filme na sala de estar mesmo, um daqueles franceses com pouco diálogo, e jogados sobre almofadas no tapete fofo, não começou a ser estranho sentir a pressão do marido contra suas costas, precisando ajeitar-se para se encaixar e nos minutos seguintes ele já não se importava e nem notava que ela andava triste demais para ir à depiladora também, dobrando-a contra o encosto do sofá e prensando-se à sua bunda grande e macia até resfolegar em alguns segundos, respiração com a boca colada em seu ouvido, que já não ouvia mais ruído algum da rachadura. O que não ouviu também, após atravessar a portinhola ainda com a faca de fatiar presunto nas mãos, foi som algum vindo das bocas de Santiago e Melina, próximos demais no semi-breu que era aquela cozinha. Lá no fundo, dobrada sobre a pia, viu que Paula cortava alguma coisa sobre a tábua de aço. E o som que deveria ouvir, o som do aço inox da faca de Paula sobre o aço inox da tábua, o som seco, repetitivo, também não ouviu. Era a mesma sensação de quando em uma queda brusca: um vácuo sonoro em seu ouvido, imobilizando-a de tal forma que a forçava a potencializar outros sentidos automaticamente. E então, de Paula, seus olhos voltaram a pousar com rapidez sobre Santiago e Melina — e o que parecia proximidade, os corpos de dois cunhados muito próximos naquele reduto quase privado que era a cozinha, quando toda a família está na sala, converteu-se em intimidade. Logo, não foi preciso escutar, porque não estava escutando nada. A cena clarificou-se como banhada em solaridade; e mais claro também ficou seu raciocínio, sinapses aceleradas ligando pontos — o olhar de um, colado no olhar de outro, trejeitos corporais francamente harmonizados, faces ruborizadas à sua chegada, bocas em semi-sorrisos numa fala que, interrompeu, ia ser dita ao ouvido — e entregando conclusões. Não foi preciso que escutasse, não foi preciso que eles negassem, porque ali não havia nada para ser negado. O que ela interrompeu, era muito claro. Era a intimidade que já não tinha com Santiago. O olhar de Paula, encarando-a do outro lado da cozinha, era como a confirmação da sua lucidez. Um relacionamento fadado a tamanha deficiência que não encontrava nem mesmo representação sonora. Silêncio pesado que só se quebrou quando pensou ter ouvido a portinhola abrir e fechar, atrás de si. Como não teve certeza, continuou mirando Santiago e Melina, estes dois que caminharam como em câmera lenta na sua direção, enquanto finalmente perguntou alguma coisa, não lembra o quê; só lembra da mão de Melina perto demais, estendida no mesmo instante que irrompeu o grito de Natália, berro hediondo assustador despertando o reflexo de Martina, este que fez seu braço se estender, acertando com faca de fatiar presunto a mão que Melina lhe estendia e que nunca entendeu o porquê.

Eles ficaram esperando o ônibus na noite mais demorada do ano. Olharam as luzes descendo pela ruela em zigue-zague, dos carros e motos que vinham em espiral lá de cima do morro, imaginando qual daquelas era a luz do ônibus que ia levar os dois até a zona sul. Havia uma multidão de pessoas querendo estar em outro lugar, festejando com amigos e familiares longe dali, e mesmo do alto da comunidade, uma porção deles conseguia sair sem depender de transporte público, como aqueles dois dependiam. Jonas colocou o braço em torno do ombro de Pato quando ele se curvou mais uma vez para ver se desta vez era ônibus aquilo o que vinha descendo. Não bastava ser ônibus, tinha que ser a linha que ia levá-los até perto da casa onde estava trabalhando a mãe de Pato, e que viesse rápido porque depois era a mesma ladainha pra voltarem. Pato apertou os olhos e vislumbrou, naqueles leds luminosos que formavam o nome da linha, acima do pára-brisa, o ônibus que estavam aguardando. Fez sinal para Jonas, que já estava de costas pra ele, tentando puxar um cigarro do bolso traseiro da calça. Quando o ônibus parou para os dois, embarcaram. “Quer dizer que o negócio é que nem supermercado?”, Jonas estava falando, menos excitado por terem embarcado do que por acharem dois lugares no ônibus que já chegara ao ponto deles quase lotado. “Tua coroa vai conseguir aquelas paradas todas de ceia de abonado?” “Eu não sei bem tudo o que tem, mas o importante é que vai rolar a carne, lance de peru e tal, que pro vô é a única coisa que importa no Natal.” Cobradores de ônibus têm uma espécie de encanto misterioso, sempre às voltas com alguma menina sentada por perto e dando corda pra assunto furado. Àquela hora, no entanto, o cobrador estava sozinho e parecia que seu único passatempo era esticar o pescoço pra presenciar a conversa dos garotos. “É firmeza isto aí. Mó grana estes bichos. E é um outro lance, não é que nem galinha, cê saca? Puta moral de poder bater este rango no Natal lá na casa de vocês, hein, Pato?” Pessoas que prestam atenção na conversa dos outros sempre incomodaram Pato. Então ele ficou encarando o cobrador pra ver se o sujeito se flagrava e ia cuidar da vida dele. “Pode crer. Mas cê sabe que é tipo de casa. Não tem ruim.”, respondeu Pato.

Aos dezessete anos, Pato era troncudo e rijo como se feito de um músculo só, dos calcanhares cascorentos à cabeça de cabelo raspado: um movimento do dedo dos pés podia ser percebido nas veias dos braços, saltadas como pistões acionando seus bíceps. Uma constituição muscular que há muito vinha servindo para espantar os malandros deslumbrados com uma Paula que parecia mais sua irmã mais velha do que mãe. Se lhe perguntavam, ele dizia não se importar com a mãe trabalhando na casa de gente rica — desde que o pai fora embora, o que significava desde antes de nascer, ela os vinha sustentando assim. E há a alguns anos, ao avô também. Mas a verdade é que detestava os ricos, por mais que aquela família parecesse ser bem intencionada. Só que era exatamente o que odiava em pessoas como aquelas: as boas intenções, a bondade barulhenta como sino de igreja. E docilidade a cada que vez que o viam? Lembrava seus vizinhos acuados por cachorro brabo lá na comunidade, tentando conquistar a simpatia do bicho com sorrisos e nomes no diminutivo. Mas não era trouxa. Se os caras queriam comprar seus passaportes para a terra dos bons de coração, presenteando sua coroa com aquele pacote de Natal, ele é que não ia se fazer de ofendido. Imbecilidade é terem decidido aquilo só naquela noite. Agora, era correr contra o atraso pra garantir a ceia de Natal. “E aí a gente vai poder dar um rolê por aquela mansão?”, perguntou Jonas. “Ah, claro que sim. Tão esperando a gente com um guia. O cara vai nos falar sobre a arquitetura da casa, as obras de arte. Mostrar até os quartos. Tudo que temos direito”, ironizou Pato. “Porra, não precisa folgar, né?”, resmungou Jonas dando um soco de leve no ombro de Pato. “E você não precisa ser idiota. É chegar e sair pianinho, meu velho. Porta dos fundos. Catar o pacote e voltar pra onde viemos. E dando graças a Deus.” Fizeram silêncio enquanto o ônibus entrava na avenida transversal à rua em que deveriam ir. Pato deu uma olhada e se tranquilizou vendo que o cobrador não estava mais de atenção na conversa deles. Batia papo com uma menina que mostrava alguma coisa pra ele no celular, na hora em que levantaram e acionaram o botão para pedir que o ônibus parasse. Do ponto, caminharam alguns poucos metros até circundarem a esquina repleta de hera que marcava a entrada para a rua onde trabalhava a mãe de Pato. Luzes de emergência se acenderam automaticamente à passagem dos dois, iluminando gradis repletos de filigranas e anjos barrocos. Pelos vãos, vislumbraram guaritas de fibra com sujeitos de expressão tensa e cachorros gigantes soltos em gramados infinitos. Meia quadra depois estancaram em frente a um grande portão cobre cujo topo ostentava uma arcada florida. Pato já tinha estado ali outras vezes, então acionou rápido o interfone, escondido atrás de um tufo de folhas. “Pois não?”, perguntou a voz metálica. “Paula, na cozinha.” Poucos segundos depois, um som robótico indicou a abertura lenta do portão. No caminho de cascalho até a casa que ficava nos fundos do grande pátio, Pato localizou a piscina onde se banhou algumas vezes quando era só um moleque e exercia algum tipo de fascínio exótico na filha mais nova dos patrões da sua mãe. “Mano! Os caras são montado na mascada. Só aquela estátua ali deve dar pra comprar um quarteirão inteiro lá na comunidade. Eita!”, comentou Jonas, deslumbrado. “Vamo. A entrada pra cozinha é ali, depois daquelas colunas.” Pato foi caminhando na frente, enquanto Jonas girava o pescoço em todas as direções. Em frente à porta de serviço, Pato estancou, aguardando por Jonas. A demora do amigo o fez retornar. Encontrou-o com o corpo inteiro colado à uma parede de tijolos de vidro, espiando o movimento na cozinha. Simultâneo à tocar no seu ombro para chamar sua atenção, Pato viu, do outro lado, um casal que parecia tentar tomar a faca de um terceira, tremendo igual vara verde. Queria sair dali antes que alguém os visse e se desse conta da intromissão. Com Jonas já descolando o rosto do vidro, Pato enxergou a única pessoa que lançou um olhar na direção deles. O vidro, com seu efeito leitoso, adicionava às imagens uma camada de irrealidade: monstros deformados na barraca de espelhos do parque de diversões. Devia ser bem feia a imagem para quem olhava do lado de lá também, porque o grito que a garotinha que recém tinha entrado na cozinha deu, ao enxergar Jonas, fez até os cachorros latirem no fundo da casa.

A pia de inox. O freezer, aberto antes por Antunes. A carne ainda não resfriada sendo fatiada por Paula. As batatas. O detergente de louça. Tudo tem seu cheiro. Infinidade de sacos plásticos na gaveta. O cheiro que se sente quando se cheira o braço de uma pessoa bem de perto. O cheiro de Melina, ainda impregnado nos seus dedos. O cheiro que não lembra mais de Martina. O cheiro de conhaque de seu sogro, gritando com ele só há alguns minutos. O perfume exalando do pescoço de Melina, próxima demais dizendo que não, ele não pode estar fazendo isto com ela. Antes que conseguissem chegar ao pátio pela porta de serviço da cozinha, é como se ela já soubesse o que ele queria. Como cães que ganem baixinho à caminho do sacrifício. Então é preciso pôr fim de uma vez. Falar-lhe ao ouvido, evitar o escândalo. Convencê-la de que nunca seria mais do que aquilo, a furtividade de encontros no meio da tarde. O cheiro das cortinas esvoaçantes de hotéis de beira de estrada. Convencê-la de que não devia ter sido nem aquilo. Ama Martina. Dói-lhe o distanciamente, mas é sua mulher. Têm uma filha. O cheiro do desespero. Cheiro salgado de lágrimas misturando-se à morango, na altura da boca. Negativas em sequência, sem emitir som. Movimentos de cabeça concatenados às mãos que lhe apertam os pulsos, não o deixam ir embora. Mesmo que diga que eles têm que voltar para a sala, têm que se juntar aos outros para a ceia de Natal. Cheiro de creme das mãos que acariciam seu rosto. Cheiro do jacarandá da portinhola que se abre quando estão perto demais, revelando Martina. E de incredulidade. O cheiro insosso da falta de crença que escorrega da boca de Martina no exato instante em que a portinhola se abre novamente, e o cheiro de presunto da faca em sua mão, esta mão que treme assim quando pergunta

o que tá acontecendo?

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Alessandro Garcia é escritor. Autor de A sordidez das pequenas coisas (Não Editora, 2010), finalista do Prêmio Jabuti, segundo colocado no Prêmio Fundação Biblioteca Nacional, com conto traduzido para o espanhol na Revista Machado de Assis, da Fundação Biblioteca Nacional.

O conto "O Grito" foi publicado originalmente no livro "Contos de Natal" (e-galáxia, 2014).

Finaliza o romance A Zona da Invisibilidade.

www.alessandrogarcia.com

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Alê Garcia
Alê Garcia

Escritor e criador de conteúdo. Um dos 20 Creators Negros Mais Inovadores do País, segundo a Forbes. www.alegarcia.cc