Sobre Tubbs, Mussum & Machado de Assis

Alê Garcia
Alê Garcia
Published in
4 min readFeb 1, 2019

Um trecho de A zona da invisibilidade, romance em finalização.

Há esta passagem em que Mariano, o protagonista, então um professor universitário e escritor, cujo primeiro livro não foi exatamente um sucesso, reflete sobre sua representatividade no cenário acadêmico no qual está inserido.

(…)

Mariano virou o sujeito que achavam ser capaz de dirimir as terríveis dúvidas contemporâneas que assolavam os temores politicamente corretos de todos de não estarem agindo de forma politicamente correta. Assim, ele se tornou a espécie de manual ambulante que era confortável ter sempre por perto para responder se afinal, Tubbs, o detetive de Miami Vice, era preterido em importância na série em relação a seu companheiro branco (“Olha só: Tubbs é mesmo negro ou só um latino de pele escura? Tudo bem chamá-lo de mestiço?”). Ou, se ele também achava que a versão cinematográfica de Cidade de Deus tinha contribuído de maneira negativa para aquela comunidade. Ou, se o fato de Machado de Assis não ser notadamente descrito como negro, mas quase sempre como mulato, contribuiu negativamente para a auto-estima dos negros (“Aliás, os negros gostam de serem chamados de mulatos?”). Ou, se Mussum, o personagem cômico e bebum dOs Trapalhões, era considerado um estereótipo negativo perpetuador que em nada auxiliava na construção do caráter das crianças negras. Ou, se Monteiro Lobato tinha notadamente construído uma personagem inferior com Tia Anastácia. Ou, se o rap era realmente uma manifestação cultural que, ao longo dos anos, trouxe mais fatores positivos ou negativos aos negros. Ou, se ele via preconceito no fato de Croquie, o personagem responsável pelo alívio cômico na série de livros infanto-juvenis Fala sério, Brother!, ser um negro com reduzida capacidade mental que só sabia contar piadas idiotas. Ou, se, é claro, ele não concordava que a concessão de cotas para negros estava “racializando um país, que, afinal, nunca fora racializado, não é mesmo, não é mesmo, não é mesmo?”.

É claro que todos os questionamentos vinham camuflados como simples motes de interesse acadêmico, indagações para as quais teria pleno conhecimento por toda sua experiência. Mas não lhe agradava o fato de se tornar o conhecedor, o sujeito não-ameaçador com quem dirimir as dúvidas sobre a questão toda, que era a maneira codificada como seus colegas se referiam a qualquer tema racial. Porque, na sua ânsia em não polemizar, em responder de forma afável a qualquer um destes temas, para mostrar quão bem resolvido era, tinha que cuidar para não cruzar o limite tênue em que tudo poderia virar blague; bastava uma pequena distração e suas opiniões e a capacidade de conversar quase infinitamente sobre Eldridge Cleaver, Stocley Carmichel, Angela Davis, James Baldwin podia virar nada além de simpáticos e resumidos comentários esparsos para animar rodas de professores enquanto não começava o próximo período de aulas. Ideias as quais ninguém se atreveria muito a contestar porque, afinal, ele era o conhecedor, o opinador abalizado, aquele que conseguiu chegar lá e de quem sempre se quer ouvir discorrer sobre militância, políticas inclusivas, cotas raciais e personagens negros bandidos nas novelas de televisão.

Havia sempre uma hora, nos jantares e conferências, quando a conversa convergia para um destes temas e então tinha seu instante de brilho: quando os rostos se movimentavam em sua direção e todos esperavam uma opinião só um tanto incisiva sobre a questão toda. Nada muito polêmico. Nada sobre apropriação da cultura negra por Vanilla Ice e Eminem. Então suspirava fundo e emendava um de seus argumentos moderados.

Mariano já não praguejava mais sobre as impossibilidades, as faltas de opções, os estereótipos e tudo o mais o que outros colegas seus, irascíveis e mobilizados membros de movimentos negros, bradavam a todo momento. Isto, além de ser muito típico, é provável que não tivesse força alguma. A verdade era que, um pouco depois de lançar seu livro, uma das reclamações que teve que ouvir de sujeitos destes movimentos, foi que sua obra “não contribuía, com a potência que poderia, para a representatividade dos negros enquanto personagens fortes na literatura”.

Na verdade, Mariano não tardou a descobrir que nada daquilo poderia resolver de maneira prática o seu problema. Mas embora cuidasse para não movimentar seus argumentos teóricos nesta direção, muitas vezes caía em sua própria armadilha. Seu seminário foi a prova disto.

Alessandro Garcia é escritor. Autor de A sordidez das pequenas coisas (Não Editora, 2010), finalista do Prêmio Jabuti, segundo colocado no Prêmio Fundação Biblioteca Nacional, com conto traduzido para o espanhol na Revista Machado de Assis, da Fundação Biblioteca Nacional.

Finaliza o romance A Zona da Invisibilidade.

www.alessandrogarcia.com

--

--

Alê Garcia
Alê Garcia

Escritor e criador de conteúdo. Um dos 20 Creators Negros Mais Inovadores do País, segundo a Forbes. www.alegarcia.cc