Rodas culturais impulsionam desenvolvimento social de São Gonçalo

Criada em 2011, a Batalha do Tanque deixa grande legado para os jovens da cidade da região metropolitana do Rio de Janeiro

Emanuel Leite
Além das Linhas
6 min readJul 29, 2019

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Projeto Hip Hop nas Escolas / Arquivo Pessoal @romarioregis

“Isso é roda cultural, batalha do Tanque, o que vocês querem ver? Sangue!”

Esse foi o lema que, por muito tempo, dominou o público da Batalha do Tanque, um duelo de MCs, realizado na Praça dos Ex-Combatentes no bairro do Patronato em São Gonçalo-RJ. O fenômeno do Tanque foi crucial para a geração de oportunidades destinadas aos jovens da segunda cidade mais populosa do estado, além de dar notoriedade para a cultura urbana dentro do município.

Fundada como Roda Cultural de São Gonçalo, a Batalha do Tanque faz parte de um vasta lista de eventos culturais que estão presentes por todo o estado do Rio de Janeiro. Sua ideia inicial era reunir os jovens artistas da cidade com o intuito de propagar a cultura local, a batalha de rimas, gradativamente, se tornou o principal e único destaque do evento.

A roda atingiu seu auge entre os anos de 2013 a 2016 e pôde aumentar seu espaço para as batalhas de MCs. A qualidade de produção e edição dos vídeos dos duelos foram aprimoradas e isto, além de aumentar as visualizações das batalhas divulgadas na plataforma do Youtube, colaborou com a expansão do público frequentador do evento.

O rapper Renan Guimarães, mais conhecido como Naan, foi um dos primeiros nomes provenientes do Tanque a ganhar visibilidade nacional. Em 2013, o rapper ganhou a edição estadual da batalha de rimas e representou o Rio de Janeiro no Duelo Nacional de MCs, que reúne anualmente, em Belo Horizonte, os campeões de todos estados do Brasil.

Naan em um show na cidade de Niterói-RJ / Instagram @oficialnaan

Segundo o rapper, a consolidação da Batalha do Tanque entre as principais batalhas de rimas do Brasil foi crucial para a recente evolução do cenário atual do rap:

“Sem o Tanque não teria nenhum desses artistas que estão em destaque hoje. Não teríamos Orochi, o Choice, o Xamã, o Class A, o BuddyPoke, o MODE$TIA, a 1Kilo. Foi uma grande leva que saiu direto do evento para se tornar muito importante para o cenário atual do rap.”, disse o músico.

Episódio 01 do Ainda SomosRap, com os rappers Knust e Pelé MilFlows

Em 2017, Renan resolveu aproveitar sua visibilidade e deu início ao projeto “Ainda SomosRap” em seu canal no Youtube. Nele, Naan conversa com alguns nomes do cenário do rap e compartilha histórias e ideais dos mesmos. A iniciativa mostra-se essencial para direcionar quem quer começar sua trilha no meio do rap.

“Quem está começando não sabe qual caminho seguir. No Tanque, os novos nomes podiam bater um papo com o pessoal mais antigo, com os produtores e com os beatkmakers. Hoje não temos mais um ponto de encontro para o desenvolvimento de novos conteúdos aqui em São Gonçalo.”, relata Renan.

Becos e vielas são escolas

Orochi e Jhony MC, dois dos participantes de maior relevância do Tanque / Youtube

Antes de se tornar um dos principais eventos de entretenimento da cidade da região metropolitana, a Batalha do Tanque era um das iniciativas da Associação Jovem Gonçalense, a AJOG. Romário Régis, político local, foi um dos fundadores da Batalha do Tanque e participante da associação. Segundo Régis, a participação dos jovens foi essencial para o fortalecimento do evento, desde seu começo.

“A principal ideia da AJOG era mobilizar a juventude da cidade para projetos relacionados às questões locais e à ocupação do espaço público. A partir disso, percebemos a importância de ter algo sólido.”, conta Romário.

A primeira edição da então Roda Cultural de São Gonçalo foi realizada no dia do Meio Ambiente e contava com apoio do Instituto Estadual do Ambiente (INEA). Além de ser uma ação com a intenção de levar mudas de árvores para pessoas da cidade, a iniciativa da AJOG contou com atividades culturais como o teatro e à dança.

Entretanto, devido à forte ligação dos organizadores com a cultura urbana, especialmente ao hip-hop, a música ganhou maior destaque na roda e, aos poucos, tornou-se o principal evento.

Para Romário, a Batalha do Tanque surgiu devido à demanda e a necessidade da juventude local de se mobilizar e construir atividades culturais destinadas aos jovens da geração em que a roda foi fundada. A possibilidade dos jovens se movimentarem para criarem práticas tornou-se crucial para a cidade de São Gonçalo, que possui poucas atividades de entretenimento.

Romário e Renan em visita do projeto Hip Hop nas Escolas em escola do município / Instagram @romarioregis

Atualmente, Romário busca criar iniciativas que atendam a demanda atual dos jovens gonçalenses, como o projeto Hip Hop nas Escolas, que aproxima os artistas da cultura urbana com estudantes de escolas públicas da cidade. O evento proporciona uma interferência cultural dentro das escolas e mostram oportunidades que jovens podem buscar para o seu futuro.

“O momento atual da juventude é importante para testar os limites da capacidade cognitiva de construção de ideias, ultrapassando os limites da atividade cultural e criando a reflexão pedagógica acerca do desenvolvimento de um jovem que está perto da fase adulta.”, afirma o político de 29 anos.

Me chame de futuro da favela

Da esquerda para direita: Choice, Orochi e Pelé MilFlows

Além de transformar a estrutura de como eventos culturais eram realizados na cidade, o Tanque foi importante na geração de oportunidades para algum de seus participantes, que puderam alcançar o sucesso no meio musical.

Choice, Orochi e Pelé MilFlows são alguns dos rappers revelados pela Batalha do Tanque e são provenientes de comunidades locais da região metropolitana do Rio de Janeiro — Atalaia, Rio do Ouro e Arsenal, respectivamente. Hoje, os três artistas contam com milhões de visualizações e realizam shows por todo o país. O sucesso desses rappers demonstra a função social que as rodas culturais de São Gonçalo podem ter por abrir novos horizontes

Como legado da Batalha do Tanque, outros eventos culturais ganharam força pela cidade, como é o caso da Roda Cultural do Alcântara. Dentro da RCA realizam-se as mais diversas apresentações artísticas, como a poesia slam e as oficinas de graffiti, diferentemente de outras rodas existentes na cidade.

Participantes do Sarau Cultural, realizado no dia 24 de junho / Arquivo Pessoal

O evento combina os auxílios pedagógicos, como os presentes nos projetos dentro das escolas da região, com a música local, tanto quanto era feito com o hip-hop na Batalha do Tanque. Além de abrir espaço para os artistas, a RCA oferece ajuda psicológica e social, como o oferecimento de educação sexual e do amparo aos usuários de drogas.

Maria Clara Machado, produtora cultural e uma das organizadoras da RCA, relata que, para a organização, os jovens são o maior tesouro do evento.

“Auxiliamos eles em todos os quesitos, seja educacional psicológico ou físico. A roda procura entender e orientar quem participa do evento. Ensinamos desde o básico até o topo da estrutura do hip-hop, não permitimos pederastia e a discriminação durante as batalhas. É um evento educacional, tem que trabalhar com o conhecimento”, afirmou Maria.

Bairro Rec, um dos braços da Roda Cultural do Alcantara / Instagram @bairrorec

Uma das iniciativas da RCA é a produtora independente, Bairro Rec. A partir dela, os participantes da roda vão além do evento e desenvolvem seu futuro na música.

“Nos preocupamos muito com os nossos, inclusive, uma das obrigações para receber o apoio da produtora é que o artista esteja cursando o Ensino Médio ou tenha terminado. Pensamos no futuro deles além da música, como seres humanos.”, ressaltou a produtora cultural de 19 anos.

Clipe da faixa Lady do músico Barcellos

A Bairro tem como principal missão propagar a cultura urbana de São Gonçalo. Além da produção musical, o grupo também investe na produção de videoclipes — como é o caso do clipe de “Lady” (confira acima) —, com o intuito crescer juntamente dos artistas da região. Ao seguir os mesmos ideias pregados na roda cultural, a produtora mostra seu compromisso com o lado social de seus artistas.

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Emanuel Leite
Além das Linhas

Jornalista | Moderador de conteúdo | Redator | Analista de mídias digitais