corpo: o potencial do corpo merecedor é sempre o de explosão cósmica

algo deu errado
algo deu errado
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3 min readAug 16, 2018

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Quanta coisa há no conceber, no inventar, no expandir. A física, a biologia e a lógica são inúteis perto da potência criativa dos troncos. No pensar, na escrita, nos colocamos diante do desafio à morte, aos manuais e à genética. O existir — que é duplo, que é múltiplo, que é partido — é o próprio conflito existencial. O corpo é o nosso campo de batalha.

Foto de Inês Nin

choques mecânicos: uma revisão
Anna Clara de Vitto

o coeficiente de restituição
de um corpo que espera
ser o próximo a merecer
não tem par na ciência

inútil calcular se a colisão
entre punho e pele é elástica:
o potencial do corpo merecedor
é sempre o de explosão cósmica

Graciana Méndez

Meu irmão,
meu oposto perfeito,
meu doppelgänger conhecido.

Ele veio para ocupar o norte
enquanto eu
cuido do sul.

A gente se fala pela pele de contato,
pela testa cabeluda
e pela língua, que cada um quebrou
quando saiu do seu lugar
que era um só
que era só um.

Quando ele corta o cabelo
eu deixo o meu crescer.
Quando eu corto o meu
à la garçonne
ele vem com cabelo de mulher.

Inventário
Raul Estrada

Da minha cabeça esculpi uma carranca para espantar gente mal humorada. Dos meus olhos fiz bolas de gude, eles verão melhor o mundo nas mãos das crianças. Minha língua usei de marca páginas de um livro de receitas. Meu fígado está curtindo num barril de cachaça num boteco do bairro onde nasci, antes dos bêbados habituais tomarem o primeiro gole da manhã, eles o reverenciam. Minhas pernas eu dei ao Museu do Amor, diz a legenda: essas pernas amaram imensamente as bicicletas. Meus joelhos os cobri de bronze, só para lembrar que nunca se curvaram a nada. Meu intestino eu doei a um orfanato para as crianças terem como pular corda, já que elas não podem pular ondas no mar. Lá também deixei algumas pedras do rim, caso queiram brincar de amarelinha. Meu nariz eu finquei como uma bandeira no topo de uma montanha, minha pátria é o exato lugar onde respiro. Meus pés eu enterrei no deserto, as sementes com dificuldade, melhor sabem inventar novos caminhos. Meu estômago serviu de sacola para um mendigo guardar os milhos com os quais alimentava as pombas. Meus pulmões eu os enchi de ar. Entreguei como balões a um velho num banco, ele distraiu-se com a chegada de um amigo morto, os balões subiram quando ele foi cumprimentá-lo. Minhas mãos eu deixei com o dedo do meio erguido e entreguei a todos aqueles que pensem exercer algum poder sobre a face da terra. Meus braços eu ofertei a uma mulher, mas ela os devolveu. Então entreguei eles para a frente anarquista dos profanadores do trabalho e do dinheiro. Achei que ela não quis os braços porque quisesse algo melhor, então entreguei o coração. No qual ela escreveu jamais, e também o devolveu. Graças a minha enorme intuição, desconfie que ela não me quisesse, então peguei meu coração e o entreguei para o coveiro, mas não porque nosso amor tenha morrido, coisa mais piegas. Na verdade era uma mensagem para ele: nem vem que não tem, jamais morro, enquanto vem com a pá, já fugi com o tesouro.

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algo deu errado
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poesia inesperada | poemas dos participantes do Curso Livre de Preparação do Escritor (Clipe) da Casa das Rosas, 2018