memória: infância / Renan Reis e Steffano Lucchini

algo deu errado
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2 min readOct 2, 2018

os meninos encaram a curva dos segundos, eles a enfrentam com olhos de fruta. os meninos. os meninos eram pedras atiradas ao rio, leves, um sonho doce.

Foto de Marta Egrejas

3 remoagens de Solemar

Renan Reis

I
por último eram as suas ruas de terra e barro,
vadias igual a vida que víamos nos córregos,
a acolher a mais mofada esperança.
havia vento e os meninos mesclavam-se às ruas,
àquilo que lento nas águas das poças
aguardava dia após dia o sol o matar.

era comum entre os meninos
juntarem-se à margem do rio,
compararem por horas a distância
deles com a outra margem,
com o barranco na outra margem.
após certo tempo, um com muita vida
saltava à outra margem e neste instante
o medo era como uma pedra atirada ao rio.
eram os meninos pedras atiradas ao rio.

no tempo que andar por suas ruas
chorar e saltar se misturavam,
a vida era um assombro. o sol se demorava
sobre o mato erguido na lama.
ninguém imaginava o tempo.

II

os meninos amavam pouco.
haviam árvores, rios suficientes.
também o sal do mar estava disponível.
toda forma de amar era dispensável.

a vida compunha-se de algumas certezas:
o cerol mais forte cortava, as pernas mais ágeis fugiam
e nunca ande descalço se os pés estiverem cortados,
lama, areia e cachorros culminam em doença.

vez ou outra os destemidos carregavam
suas feridas para as ruas, desafiavam leis.
antes que a tarde recolhesse as galinhas
estavam se coçando até os ossos.

havia prazer em coçar e admiravam
os caminhos tortuosos sobre a pele.
aprendiam que a vida também se compõe
de exceções, inchaços e que sempre piora à noite.

III

as noites chegavam acompanhadas
das sombras dos morcegos
que improvisavam no escuro
das copas das árvores à caça
de cucas às vezes goiabas
eles espantavam os olhos
das crianças e dos jovens
até os adultos aderiam
ao espetáculo noturno
a maioria assistia calada
os rasantes improváveis
para alguns era insuportável
suster a ânsia de tocar no bicho
de ver o bicho mais próximo
estes tomavam de varas
balançavam-nas com força
ouvia-se o zumbido de longe
é possível que os morcegos
também ouvissem aquele som
porque atraídos davam de cara
com as varas e espatifavam-se no chão
eram poucos a maldizer o ato
a maioria tinha uma sede escandalosa
aglomeravam-se em torno do corpo
do morcego morto como se ele
houvesse pousado para satisfazê-los
o voo tornara-se uma lembrança distraída
e alguns voltavam-se para a monotonia
da rua onde os cachorros ainda latiam

.

s/título
Steffano Lucchini

carne e corpo
e alma,
leves como um sonho de infância:
um sonho doce

evapora-se tão fácil
e fica no ar que se respira,
se condensa na pele
e na memória

.

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algo deu errado
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