Conferências, imersão e onde ideias vão para morrer

Fabricio Pontin
Ensaio
Published in
6 min readJun 17, 2016

(eu não sou muito bom com títulos)

Por uma dessas coincidências bizarras da vida, fui parar em Rosendal, um retiro romântico na Noruega, que já foi a residência de verão da família Real Sueca, para um workshop sobre Edmund Husserl.

Husserl é um desses pensadores do final do século XIX, início do século XX, que tentaram fazer sentido de uma Europa caindo aos pedaços e uma série de revoluções científicas e comportamentais que não cabiam dentro dos quadros moldados pelo idealismo e empiricismo dominantes no período. Embora Husserl nunca tenha tido o impacto ou a visibilidade popular de autores como Freud, Nietzsche, Weber ou Russell, ele certamente foi influente ao iniciar o tal do método fenomenológico, que eventualmente descambou no existencialismo Francês, e nas principais figuras intelectuais vinculadas ao movimento fenomenológico.

Assim como seus pares epistemológicos do final do século XIX, Husserl tinha uma predileção por explorar os “grandes” temas: a ideia de pessoa, de consciência, de ciência, a possibilidade de conhecimento “puro”, o problema da estrutura “final” da realidade, a relação entre sujeito e objeto, conceito e mundo, a possibilidade de uma sociabilidade “universal”. Ao contrário de seus pares epistemológicos, Husserl não tinha uma grande preocupação em ser entendido ou em ser compreensível. A prosa de Husserl é terrível mesmo dentro dos parâmetros da filosofia germânica (para os desavisados: isso quer dizer que o texto está em algum lugar entre o “quase incompreensível” e o “incompreensível”), e em um período intelectual onde a tendência de escrever muito sobre todos os temas possíveis e imagináveis já é grande, Husserl tem o indesejado título de “escritor mais profícuo”. Isso quer dizer que os arquivos de material não publicado pelo autor em vida estão na casa das cem ou duzentas mil páginas. No século XIX e XX só Dewey escreveu tanto quanto Husserl — e Dewey tinha a desculpa de escrever para jornal, periódico, zine e qualquer pessoa interessada em ouvir a opinião dele sobre qualquer coisa (eram boas opiniões, diga-se de passagem).

Apesar disso tudo, algumas das principais ideias de Husserl envelheceram melhor do que as dos seus pares do início do século. De todos os alunos de Brentano, Husserl talvez tenha a ideia de (in)consciência e cinestesia mais compatível com o (pouco) que sabemos sobre neurociências hoje, e o diagnóstico da “crise” das ciências positivas e da própria Europa, feito nos anos 30, num momento pré-Guerra, ainda é monstruosamente atual (sobretudo no que tange a burocratização da universidade e do professor universitário).

Mas é muito difícil abordar Husserl de forma literal e escolástica sem cair no ridículo. Apenas para dar um exemplo, dentro dos arquivos Husserl existe uma gaveta com o nome de “intersubjectividade”, essa gaveta contém doze mil páginas de material escritos em uma tipografia inventada pelo autor, que foram organizadas e transcritas para o alemão “gramatical” e viraram três volumes publicados na Husserliana pelo Iso Kern.

Iso Kern transformou organizar o “band” sobre intersubjetividade em um projeto de vida. Foram 12 anos de trabalho dentro dos arquivos Husserl, transcrevendo a tipografia do autor, selecionando o que era “rascunho” e o que era “finalizado”, e organizando cronologicamente os escritos.

Assim como Iso Kern, vários outros pesquisadores tornaram a transcrição, organização e tradução dos (até agora) 42 volumes de trabalho de arquivo da Husserliana uma missão. Eu trabalhei por cinco anos com um desses caras, e é admirável ver o nível de dedicação que o trabalho demanda. Tive a oportunidade de ver o material de trabalho para a tradução e re-organização do “band” 31, sobre síntese passiva, e o esforço braçal e intelectual necessário para a coisa.

A história de como eu vou parar na conferência de Rosendal, cercado por gente que dedica a vida a organizar os arquivos e interpretar a tipografia Husserliana é tão bizarra quanto a história de como eu resolvi começar a estudar Husserl in the first place — e, na realidade, tão bizarra quanto minha trajetória na filosofia, como um todo.

Husserl, para todos os efeitos, é um autor desconhecido no Brasil. Eu só comecei a me interessar pelo autor na medida que ele tinha alguma influência em autores da filosofia política que me interessavam (particularmente Habermas), e por uma dessas séries de coincidências da vida acadêmica eu tive a oportunidade de fazer meu doutorado com um dos maiores especialistas em fenomenologia nos EUA — por acaso, o cara responsável pelo band 31 que eu mencionei ali em cima.

Do nada, comecei a estudar Husserl e não vou mentir que me apaixonei. É uma droga tentar ler e entender alguém que escrevia de forma desordenada, enloquecida e violentamente insular. Mas com o tempo tomei algum gosto pelos quebra-cabeças conceituais do autor, sobretudo pela vibrante tentativa de fazer metodologias profundamente abstratas dialogarem com outros campos. Husserl era um leitor ávido de antropologia, biologia, e um excelente matemático (talvez ele sempre tenha sido um matemático muito mais competente do que filósofo, e talvez a insegurança de ter que se afirmar como um pensador legítimo explique a produção insana do autor), e sempre se preocupou em fazer a sua filosofia colaborar com esses campos (com resultados questionáveis, mas nem por isso menos importantes).

Esse ano, eu estava na Noruega para um workshop sobre questões de teoria política, bastante focado em questões pragmáticas e práticas quando meu parceiro de pesquisa em Bergen me manda um email dizendo “ei, vamos lá com os Husserlianos?”.

Como meu ex-chefe estaria na conferência, e conseguimos uma bolsa para ficar uma semana a mais na Noruega, resolvi que: que diabos, vamos lá. Minha expectativa era ver uma discussão sobre a relevância do método, sobre a atualidade das discussões de um tipo de filosofia que sempre teve como ambição principal ter algum impacto prático (e, na sua modalidade mais delirante e ambiciosa, determinar a validade de determinadas práticas).

Resultado:

Fenomenólogos são criaturas marrentas. Que a conferência fosse em um dos hoteis mais caros da Escandinávia, com jantas no restaurante mais concorrido da Noruega, e workshops em um fino salão de eventos, era algo obvio para qualquer um que tenha falado mais de cinco minutos com um sujeito de gravata borboleta profundamente interessado no segundo anexo da Crise.

O que eu não esperava (na realidade, o que eu tinha alguma esperança de não ter que ver) era que os conferencistas se dedicassem a passar dois dias discutindo as mudanças na definição de “redução eidética” no volume 13 e 14 dos arquivos, comparada com a mesma mudança nos volumes 28 e 29.

O que eu não esperava era ver a velha-guarda Husserliana re-explicando para todas as jovens pesquisadoras que tiveram a péssima ideia de submeter papers para apresentação o que na realidade elas estavam querendo dizer.

E eu realmente não esperava ver o nível de entusiasmo de senhores de 80 anos sobre a suposta validade da mudança do método genético para o generativo nos anos 30, e como isso, na realidade, revalidaria toda a metodologia Husserliana diante do que Quine havia escrito. Em 1950.

Foram dois dias de imersão em assuntos insulares, que só interessavam aos presentes dentro do workshop. Por um lado, isso é esperado. É evidente que um workshop para convidados pode ter um caráter de imersão e “insularidade” (isso existe? agora existe). Por outro lado, é profundamente frustrante, sobretudo pelas contribuições que uma abordagem mais aberta e menos literal da obra de um autor como Husserl poderiam trazer.

Na realidade, essa conferência ofereceu um micro-cosmo do que são conferências de filosofia, e, muitas vezes, cursos de filosofia: exercícios de insularidade e imersão em conceitos, e uma alienação desses conceitos de qualquer realidade ou discussão empírica.

Mais ainda, a discussão empírica só é relevante na medida que ela re-valida algum ponto conceitual. Se o empírico oferece um desafio ao conceito, então ele é retirado de pauta, até a gente achar um jeito de enfiar a teoria goela abaixo.

A ironia disso tudo é que o autor que dava o nome a conferência passou a vida mudando conceitos e mudando ideias para tentar achar um modelo conceitual mais interessante para descrever fenômenos científicos e sociais — e fracassando, mas fracassando abertamente e honestamente, na tentativa.

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