Governismo e as pentecostais: ou, uma história de amor antropofágica

Fabricio Pontin
Ensaio
Published in
7 min readMay 4, 2016

A série de eventos levando até a eleição de Lula, em 2002, foi bizarra, quase surreal.

A memória do final do governo Lula, em 2010, é a da maior articulação governista da história do Brasil, unindo diferentes partidos políticos e capitaneada por um chefe de executivo com 87% de aprovação. Hoje, pensar que Lula, para chegar em 2002 como favorito, precisou de uma articulação imensa de fatores, é um pouco difícil.

O período de 1998 até 2002 foi de extremo desgaste político e econômico. Cardoso, diante da crise Russa, encarou a desvalorização da moeda e perda de créditos do Brasil, que sofreu o equivalente a um pedido de concordata do FMI, administrador de fato da economia brasileira até 2002. Enquanto isso, o Partido dos Trabalhadores fazia uma oposição feroz e bem articulada à política de austeridade do Banco Central, ao mesmo tempo que articulava os termos da campanha de 2002.

Lula não era a figura carimbada única do PT. Após duas derrotas humilhantes diante dos tucanos, havia medo de um maior desgaste de uma quarta candidatura mal-sucedida — sobretudo o medo que ao insistir no Lula o PT caísse na irrelevância, ou pior, no destino do PDT. Suplicy chegou a tentar uma candidatura alternativa.

Mas a surrealidade política Brasileira montou a tempestade perfeita para a eleição de Lula.

1998 — Morte de Luis Eduardo Magalhães, candidato natural a sucessão de Cardoso em 2002, de “infarto”; morte de Sérgio Motta, o grande estrategista tucano.

2001 — Morte de Mário Covas, Geraldo Alckmin se torna, do dia para a noite, uma figura política de repercussão nacional. Esqueceram de avisar, no entanto, para a personalidade surgir junto com a repercussão nacional.

2001-2 — Roseana Sarney, no vácuo da crise do governo tucano e surfando a onda do medo de um possível governo Lulista, começa a crescer vertiginosamente nas pesquisas, até que

oooooops

Em 2002, então, o Partido dos Trabalhadores tinha uma oportunidade única na mão. O governo estava fragmentado diante de uma crise econômica brutal, e a desarticulação da base aliada tucana dava uma oportunidade para a construção de uma nova aliança nacional, uma nova, digamos, frente popular.

Foi nessa época que um grande estrategista do Partido dos Trabalhadores, atualmente cumprindo pena restritiva de liberdade, deve ter lembrado de algo que ele havia escrito em 1988, quando outra oportunidade de uma aliança nacional surgiu — e não foi aproveitada.

Zeca Dirceu, 1988.

A partir daí, o PT começa a pensar a grande coalisão que iria permitir a tal da governabilidade. O pacto foi montado, inicialmente, entre Lula e um representante do alto-empresariado, o José Alencar, que garantiria que não ia ter nada disso de socialismo real, podem ficar tranquilos.

Mas a aliança também precisava de um elemento, digamos assim, moral. José Alencar, curiosamente, também garantia isso, na medida que o “partido” do empresário também era a legenda de ocasião preferida de 8 entre 10 pastores neo-pentecostais.

Ao garantir o apoio dos neo-pentecostais Lula garante o voto de um dos setores mais motivados da sociedade Brasileira. O bloco de voto neo-pentecostal tem características extremamente interessantes do ponto de vista estratégico: ele é previsível, comprometido e extremamente fiel. Isso tem diversas explicações, a mais simples é que trata-se de um dos poucos grupos de base que vê seus políticos eleitos de forma rotineira, no dia-a-dia. O eleitor tem contato direto com o representante, e o representante adere a uma plataforma suficientemente ampla que, se não realizada, a culpa sempre pode ser de outros.

A aliança com os neo-pentecostais tem um custo político enorme, que já deveria ter sido melhor compreendido em 2010, mas que só agora parece começar a ter efeito na militância de esquerda, anestesiada por 12 anos de adesismo automático às políticas sociais do governo — sem olhar muito para o tipo de congresso que estava garantindo essas medidas.

Em 2010, Lula sai do governo no momento de maior otimismo da história republicana brasileira. Eu diria mesmo que nunca antes na história desse país houve tanto otimismo. O país ia sediar uma copa do mundo, uma olimpíada, ia explorar o Pré-Sal, tinha acabado com a pobreza, e antes-de-ontem a Dilma, que tinha evitado um novo apagão, havia sido observada andando sobre a água.

Várias pessoas confirmavam o ocorrido, e garantiam que, além de milagres, Dilma garantiria a manutenção do status quo moral que a bancada (e vejam, que em 2002 o que era um amontoado fragmentado de pastores, agora era uma bancada com poder político de protagonizar a produção legislativa no Brasil) de neo-pentecostais precisava vender para a sua base (que, diga-se de passagem, é tão digna de representação quanto qualquer outra).

Marco Feliciano, 2010

Feliciano garantia uma parte importante do apoio moral dos neo-pentecostais. Mas há pouco dinheiro no apoio moral. Era preciso também um apoio político e financeiro significativo. No novolíngua Brasileiro “apoio político e financeiro” tem como contraparte no dicionário a sigla PMDB. O ideal, então, seria encontrar dissidências dentro do PMDB vinculadas ao movimento neo-pentecostal e com poder de influência em outros setores estratégicos — alguém capaz de, ao mesmo tempo, articular o apoio moral e o apoio político que uma candidata sem grande apelo ou habilidade política precisaria. Quem se encaixaria no perfil?

Eduardo Cunha, 2010
Também de 2010

E assim, no espaço de 10 anos, políticos neo-pentecostais passaram de atores coadjuvantes na produção legislativa Brasileira a protagonistas no congresso nacional. A estratégia de votação em bloco da bancada, assim como o surgimento de partidos especializados na condução de políticos de vocação religiosa neo-pentecostal serve, por 12 anos, o interesse direto do pacto governista. Não apenas serve ao pacto governista, é estimulado diretamente pelo executivo, através da legitimação de políticos da bancada evangélica em cargos ministeriais (o Pastor Crivella é sucedido pelo Pastor Lopes, ambos da igreja Universal, ambos, hilariamente, no ministério da Pesca), secretarias (talvez a liderança de Marcos Feliciano na CDH tenha sido a mais infame de todas) e em diversos cargos de segundo e terceiro escalão em Brasília. A vantagem obtida pelos políticos da Bancada da Bíblia, pelo seu apoio moral e espiritual, era bastante material e financeira. Pessoas cínicas poderiam dizer, até, que na falta dessa contraparte material e financeira esses políticos poderiam, de uma hora para a outra, sentir uma terrível crise de consciência moral.

Corta para 2016.

Um governo despedaçado tenta rifar pedaços de uma estrutura executiva destroçada pelo abandono de lideranças políticas. Pautas que precisariam de nova legislação ou, no mínimo, regulação, relacionadas com direitos reprodutivos, morte digna, educação fundamental e violência doméstica são deixadas na mão do STF que, desesperado diante da ineficácia dos instrumentos legislativos disponíveis, precisa legislar no vácuo do Congresso Nacional.

Uma presidente que não tomou posse de fato tenta salvar a própria pele aderindo estrategicamente, e magicamente, a uma pauta de proteção de direitos reprodutivos e um apelo ao movimento feminista e estudantil (dois movimentos que haviam sucateados e abandonados durante 14 anos). Dilma alega, para quem quiser ouvir, que é vítima de um golpe, de uma conspiração, de um ataque desproporcional e inesperado.

Mas como o ataque era inesperado?

A situação atual do governo, com o fato consumado do impedimento da presidente, é uma continuação natural do modelo de governabilidade adotado pelo executivo nessa década. E o apoio dos neo-pentecostais ao novo governo é simplesmente a volta da normalidade executiva, não é um fato escandaloso e sinal dos “novos” tempos. É apenas a continuação do modelo de governo adotado em 2002, fortalecido em 2005 e consolidado como normalidade política em 2010.

Essa normalidade política, tudo indica, já se ensaia para continuar no governo Temer — com o devido escanteamento das investigações, e reafirmação da politica de social-democracia envergonhada do governo Lula (e até da primeira parte do governo Dilma).

As cenas do próximo capítulos são tão previsíveis quanto tediosas. Não há o menor clima político para grandes mudanças por parte de Temer. Mas talvez agora a bancada neo-pentecostal que estava um pouco tímida para insistir na passagem de legislações como o Estatuto da Família, e reformas conservadoras na organização escolar e ainda mais restrições a direitos reprodutivos, possa perder o receio de jogar para ganhar.

O jogo nos últimos 14 anos da bancada neo-pentecostal era um jogo de legitimação enquanto grupo político. Essa legitimação já foi adquirida, com folga. Agora, existe um momento político interessante onde o protagonismo não é apenas na proposta de leis, mas na passagem de legislações. A bancada tem poder para pressionar o novo governo e dizer “você viu o que aconteceu com a Dilma?”.

Vão tentar nos vender que a culpa disso é de uma suposta virada conservadora.

Não é.

É claro que existe uma mobilização conservadora no Brasil. Em grande medida, trata-se de um movimento de caráter restaurador — que, ironicamente, se rebela diante de pautas via de regra garantidas pelo judiciário, e não pelo congresso ou pelo executivo, e com alguns reflexos políticos realmente preocupantes. Mas esses atores não são o núcleo da atuação relevante politicamente aqui. Até porque esses atores são, fundamentalmente, massa de manobra de políticos mais interessados em manter um certo modelo de política e atuação congressional que precisa de certa estabilidade econômica e administrativa.

Claro, a existência de um movimento mais estruturado legitima em certa medida um esforço legislativo conservador correlato ao movimento. Mas essa tomada de relevância do movimento conservador é relacionada com a legitimação do movimento neo-pentecostal em nível governamental. A culpa por essa legitimação e normalização da pauta neo-pentecostal é do modelo de governo e de operação congressional dos últimos 14 anos. Se Dilma quer culpar alguém pela própria queda, convém olhar firmamente no espelho.

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