O fantasma de George Wallace na Casa Branca

Fabricio Pontin
Ensaio
Published in
7 min readNov 13, 2016

Em 1964 Lyndon Johnson assinou o Civil Rights Act, desafiando a autonomia dos estados do sul dos Estados Unidos para decidir sobre políticas segregatórias. A intervenção de Johnson nessa questão dividiu o partido democrata. O consenso, na época, é que intervir na autonomia dos Estados sobre questões raciais “custaria o sul por 50 anos” ao partido democrata.

Johnson, não por amor a causa dos Direitos Civis (as declarações e cartas de Johnson, na época, deixam bem claro que ele era um tanto racista) , mas por medo da dimensão que o movimento tomava, do ponto de vista institucional — e da insustentabilidade do modelo segregatório, em longo prazo.

De fato, o Civil Rights Act causa um cisma cultural dentro do Partido Democrata, um verdadeiro cisma dentro da estrutura montada pelo partido nos anos FDR, ligada com os pequenos produtores rurais, no sul, e com os trabalhadores da metalurgia, no norte. Os produtores rurais abandonam o partido, e se vinculam profundamente ao discurso conservador e religioso de Wallace e Goldwater, criando uma estranha aliança entre magnatas e pequenos produtores rurais, que formou um grupo de eleitores organizados, vinculados quase que existencialmente a uma pauta de valores conservadores e um nativismo pastoral, tipicamente norte-americano, que remonta até Thomas Jefferson.

Todas as vitórias Democratas pós Lyndon Johnson (e foram poucas, apenas três presidentes democratas vencem as eleições depois de Johnson,) dependeram, de um lado, de um desgaste enorme de candidatos republicanos (isso explica a eleição de Carter, pós Watergate, e de Obama, pós GWB), ou de um apelo para uma centro-direita trabalhista e sulista, que oferecia uma espécie de populismo liberal, de um lado, e um populismo penal, de outro (Clinton, que, não vamos esquecer, teve uma vitória inesperada contra George Bush em 1992).

Todas as eleições democratas depois de Johnson dependeram profundamente de uma ligação com os eleitores democratas ligados a manufatura do norte — o que chamamos de Blue Collar, de uma vinculação com pautas vinculadas a produção e proteção de um modelo de proteção. Obama focou nisso de forma intensa na eleição de 2008, quando acusou Bush de terminar o serviço do marido de sua adversária nas primárias: era preciso recuperar o senso de comunidade política e social dos trabalhadores da manufatura.

Desde 2002, no entanto, um leitor cuidadoso do mapa eleitoral norte-americano indicava cuidado com uma mudança estrutural importante: os democratas estavam perdendo o apoio desses trabalhadores de manufatura. O melhor exemplo para essa análise é o estado de West Virginia.

West Virginia é um estado historicamente vinculado a produção de aço. Basicamente, aço era escavado em West Virginia, tratado na Pensilvaniana, vendido em Ohio e Indiana, e usado em Michigan para fazer carros (atenção para esse percurso). Entre 1968 e 1998, mesmo quando os democratas perderam no nível federal, eles levaram esses quatro Estados (exceto nas duas eleições de Reagan, que, bem, levou tudo).

Pois bem, hoje West Virginia é um estado que vota de forma quase unificada em candidatos Republicanos. O que aconteceu?

A partir da segunda metade da década de 90, há uma alteração fundamental na economia Norte-Americana. Os EUA transferem a produção de manufatura para a China, e gradualmente começam a focar em uma economia baseada em serviços e em alta-tecnologia. Essa transferência de produção destrói o chamado “Rust Belt” — acabando com a economia de cidades e distritos inteiros que dependiam da produção de aço. Isso acontece, principalmente, durante os dois governos do Bill Clinton, e é cristalizado como algo irreversível durante os dois governos de Bush — daí a frase de Obama, que acabou voltando para aterrorizar ele nessa campanha, de que os empregos na industria de manufatura, que haviam sido perdidos, “não voltariam mais’.

Os Democratas então observam estados historicamente vinculados com pautas de centro-esquerda, trabalhista, virarem estados “vermelhos” no mapa eleitoral — ou seja, votarem nos Republicanos. Em trinta anos, aqueles estados que antes eram vinculados de forma decisiva com os Democratas, consistentemente elegeram deputados, governadores e senadores Republicanos.

Kerry perde em 2004 por não levar Ohio (ele também perdeu Indiana, West Virginia, Virginia). Ali, vários sinais de atenção deveriam ter sido ligados no partido.

No entanto, os Democratas preferiram focar em um país que demograficamente está mudando. A aposta era simples: os Republicanos, com uma pauta anti-imigrante, anti-direitos reprodutivos e anti-liberalismo cultural, e com uma política de austeridade ainda pior que a nossa, não vão conseguir 1) virar Estados no Rust Belt o suficiente (o que é dizer, levar Michigan e Pensilvaniana, além de Ohio e Indiana) e 2) levar estados cuja as características demográficas mudaram o suficiente para que a população branca e conservadora, sozinha, não consiga decidir a eleição.

A estratégia pareceu funcionar, em alguma medida, com as duas eleições de Obama. Winsconsin, Michigan e Pensilvânia votaram de forma decisiva no candidato democrata, com as regiões urbanas, amplamente diversas e liberais, dando uma vantagem monstruosa e intransponível para os Democratas.

A coisa chegou no ponto, que os próprios republicanos indicavam que, sem uma mudança fundamental nas propostas políticas do partido, o mapa eleitoral estava perdido por uma geração (talvez duas).

Como Trump é possível, então?

Quanto mais eu vejo os mapas, mais eu acho que foram quatro questões resumidas na frase Os Democratas indicaram uma mulher chamada Hillary Clinton para suceder Barack Obama.

Hillary Clinton está vinculada ao modelo econômico que destruiu boa parte da estrutura comunitária e econômica do meio-oeste. Michigan votou massivamente em Bernie Sanders na primária por esse motivo. As políticas neo-liberais do governo Clinton foram uma bomba no estilo de vida do meio-oeste rural. Para vencer no meio-oeste, a Hillary ia precisar, e muito, dos votos da população diversa dos núcleos urbanos no Meio Oeste (Detroit, Pittsburgh, Milwaukee, Columbus, Cincinatti).

Hillary Clinton está vinculada a política criminal de Bill Clinton, que foi responsável direta pelos números de hiper-encarceramento da população negra nos Estados Unidos. Clinton chamou jovens delinquentes negros de “super-predatores” ao formar uma legislação que foi central para permitir prisões em primeira ofensa, por longo termo — e que atingiram profundamente as regiões periféricas de Detroit, Pitt, Milwaukee, Columbus e Cincinatti.

Hillary Clinton é uma mulher.

Barack Obama é negro.

Esses quatro fatores parecem ter sido fundamentais no comportamento eleitoral de grupos que eram fundamentais para a Hillz. O que eu quero dizer é o seguinte: A Hillary poderia ter ganho sem o suporte decisivo de negros nas regiões metropolitanas, sem o suporte de brancos (e, sobretudo mulheres brancas) nas regiões rurais e sem o suporte decisivo de latinos no Sul dos EUA. Mas ela não poderia ganhar sem todas essas coisas ao mesmo tempo.

Foi exatamente isso que aconteceu.

Hillary teve menos suporte que Obama entre Latinos e Negros, e perdeu para Trump no apoio de mulheres brancas (algo que absolutamente ninguém imaginava que ia acontecer, e que merece uma análise à parte, que eu não sou capaz de fazer).

O resultado foi a conjunção de fatores ideais para a eleição de Trump. Enquanto Hillary focava em pautas de grupos populacionais periféricos, Trump apelou para que a população branca, rural, se comportasse como, bem, algo que essa população, de fato, virou: uma minoria.

Pessoas brancas, de renda estável, mas relativamente baixa, com perda de segurança de emprego, perda de segurança comunitária relativa, e em zonas rurais, votaram no Trump de forma decisiva. A divisão distrital do mapa Norte-Americano mostra isso de forma dramática.

Uma divisão dramática

A divisão por distritos dá a dimensão do drama da Clinton, de forma mais clara, se a gente pensa em termos de densidade e proporção distrital. Os distritos rurais, que votaram no Trump votaram com intensidade muito maior que os urbanos que seriam decisivos para a Hillary.

Vejam, isso não quer dizer que certos distritos urbanos não votaram na Hillary com intensidade enorme. Por exemplo, só no Brooklyn a Hillz fez mais de 300 mil votos de diferença ao Trump (mais votos que o Trump soma na diferença dos três estados que garantiram a eleição: Pensilvânia, Winsconsin e Michigan). A questão é que a Hillz não fez votos onde ela precisava fazer. A Hillary ganhou votos e fez grande diferença onde não precisava, o Trump fez votos e pequena diferença onde importava decisivamente.

Essa é a história da vitória de Trump, que, no fim das contas, é ainda um reflexo de algo que custou aos Democratas uma eleição fundamental em 1968.

Nixon vence com uma política de resistência a mudanças estruturais e culturais inevitáveis — ele vence com um discurso de restauração. Trump venceu com algo parecido, um apelo para uma parte da população Americana que se ressente de ter perdido o protagonismo cultural e econômico no próprio pais, e que agora consegue, de forma surpreendente e organizada, o protagonismo político-institucional.

O que isso vai causar, exatamente, é objeto de futurologia. Agora, o fato, é que o último prego foi colocado no modelo de política vinculado aos Clinton, e, com isso, tanto o consenso político “catch-all” representado por Reagan, quanto a contra-parte desse consenso, no neo-liberalismo “moderno” de Clinton, morrem.

Mas, na contagem de batatas, o fato é que os Republicanos tem um problema na mão. Clinton deve ganhar o voto popular por mais de 500 mil voos (há quem diga que por mais de um milhão), e o Trump vai iniciar seu mandato como um presidente profundamente impopular, que vai encarar uma dificuldade de legitimar publicamente as decisões do seu congresso. Assim como nos anos 1970 Nixon e Wallace representavam um passado, uma sociedade que já havia acabado, Trump representa algo parecido.

Mas é ingênuo pensar que esse modelo de política pastoral e conservador norte-americano vai cair calmamente, sem reclamar. E é essa queda que a gente vai ver nos próximos quatro anos.

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