Os Cinquenta anos de Kurt Cobain e a primeira morte de Ronald Reagan

Fabricio Pontin
Ensaio
Published in
7 min readFeb 21, 2017

Esse post é uma versão modificada de um troço que eu postei nos idos tempos que as pessoas tinham blogs, aqui.

Muita gente que cresceu ouvindo música na minha geração fala que o Nevermind foi o primeiro album que marcou a vida deles. Eu tinha 10 anos quando o album foi lançado e de verdade só fui ouvir falar da banda lá por 1992, quando o clipe de Smells Like Teen Spirit começou a passar na MTV em alta rotatividade. Se eu for sincero com vocês, vou ter que falar que o primeiro album de rock que eu realmente me interessei foi o Appetite for Destruction, do Guns and Roses.

Claro, isso foi efeito do Rock in Rio 2. Lembro, inclusive, do episódio envolvendo o Sepultura e a bandeira do Brasil. Eu tinha 10 anos e lembro de falar com um conhecido mais velho que me apresentou para os horrores de Anthrax, Slayer e Metallica. Eu devia processar esse conhecido por qualquer perda auditiva que eu tenha hoje.

O Appetite for Destruction, então, chegou a galope junto com o que a banda do Axl produzia na época. No caso, o Use your Illusion. Lembro da minha alegria ao ver as fitinhas K7 do Use your Illusion 1 e 2. Também lembro do dia que gravei Led Zeppelin por cima delas (na falta de fita K7 virgem, um pré-adolescente sem mesada precisava improvisar). O Nirvana, prá mim, surgiu no Hollywood Rock de 1993. Um show reconhecido universalmente como um dos piores shows da história do Rock e certamente um dos piores shows do Nirvana — que naquele momento não estava, exatamente, em uma sequência fabulosa de performances.

Curioso, eu adoro os dois albuns do Nirvana. Hoje. Mas eu só fui comprar o Nevermind em 1996. O InUtero eu nunca tive — embora, risos, esteja considerando comprar o LP de 180 gramas. No entanto, comprei o Siamese Dream no ano do lançamento, e o Mellon Collie também, no caso comprado após uma deliberação minha com meu pai no bourbon da Assis Brasil — na época, era o único Bourbon (até hoje acho que enganei ele que era um album de música clássica por causa da capa).

Mas eu adorava os clipes do Nirvana. Cacete, o clipe de In Bloom — aquela versão alternativa, que eles destroem todo o cenário no final — deve ter ajudado a compor meu caráter. Inclusive, culpo aquele clipe por dois ou três quebra-quebra de salas de aulas na minha escola de segundo grau. Alguns desses quebras-quebras podem ter envolvido furadeiras. Não confirmo nada e nego tudo na justiça.

Eu não fui parte da Geração X. Acho que estamos, nós que nascemos entre 1979 e 1983, em algum lugar entre a geração X e Y. Muito novos para entender direito o que tava rolando no Grunge, muito adultos para embarcar no completo abandono da gurizada. Mas, por outro lado a gente criou essa coisa que se chama de internet. Então muito respeito, por favor.

Não dava para sacar, só vendo os clipes do Nirvana e o desaparecimento dos cabelos de espanador e dos clipes megalomaníacos, que a gente tava testemunhando a primeira morte de Ronald Reagan. Claro, dava para sacar que alguma coisa tava acontecendo e que aqueles caras de Seattle tavam falando dessa coisa. O grunge é, nesse sentido, irmão mais novo do RAP. São as duas frentes das turmas de guris fudidos que cresceram nos anos oitenta. Claro, Nirvana é tanto a entrada disso no mainstream, quanto o início do fim da relevância da coisa.

A turma de Seattle, 1989–1997, tem isso em comum com a turma de Nova Iorque, 1969–1978. No momento que a coisa entrou em grande circulação e foi fagocitada por uma trupe de imitadores baratos, oportunistas e coisas afim, perdeu-se um tanto do ânimo e do senso de novidade. Ficou um silêncio meio idiota no ar depois da morte do Cobain, meio que uma constatação que a coisa já tava indo ralo abaixo no momento que o Bush conseguiu um contrato para gravar música e que permitiram que os pirralhos do Silverchair parassem de ir pra escola para ir pro estúdio.

Mas aí, também, tem que lembrar do otimismo dos anos Clinton rapidamente colocou o tom de caos urbano do Nirvana e do Public Enemy para baixo do tapete. Ninguém quer saber se no Harlem o pessoal sangra até a morte porque a ambulância não chega (o nome da música é 911 is a Joke, caso vocês estejam se perguntando do que eu tô falando). Ninguém tá interessado se é uma merda arrumar alguma coisa para fazer ou alguém que vá te levar mínimamente a sério quando tu é um guri que cresceu no meio de um trailler park em um cu do mundo no meio de Washington.

Qualquer semelhança com os anos oitenta não é coincidência.

O interessante é que os anos Clinton fazem o pessoal esquecer do caos pós-Reagan, e daí toda aquela vibração vira piada. O mundo vira um lugar onde John Mayer pode ser chamado de blues e que Kanye West faz um album com uma capa detalhada em ouro. Isso no meio de uma das piores recessões que já se teve notícia. Oka.

Por outro lado, procurar o “novo Nirvana’, ou ficar se lamentando que não se fazem mais rock stars como antigamente me parece ser tão ridículo quanto alegar que o rock “morreu”. Claro, é meio idiota que figuras que em qualquer outro momento seriam secundárias ou reconhecidas como produtos da mídia de uma hora para outra adquiram contornos de lenda simplesmente porque morreram em decorrência de abuso de substâncias lícitas ou ilíticas. Também não adianta ficar reclamando que a geração X achou massa arrumar um emprego que pagava bem pácas durante os anos Clinton — mais ou menos como os Hippies viraram Yuppies quando tiveram a oportunidade de ganhar um bom salário. Mais uma vez: ninguém curte viver na merda.

Só que os anos de bonanza e histeria otimista, com o Clinton, que realmente só acabam no momento que as torres gêmeas desabam, se não reviveram a política econômica do Reagan (e vou poupar vocês de insultos, aqui), certamente reviveram o espírito daqueles anos. E lá vamos nós de novo. Só que Bush respondeu ao desabamento das torres pedindo mais otimismo, e ali talvez os Estados Unidos tenham começado a cair no que a gente tá vendo agora.

Não foi tanto a queda das torres. Mas a resposta. Obama governa os Estados Unidos durante a segunda morte do Reagan, quando uma grande tradiçao americana é retomada: o pessimismo e o clima de desastre geral e irrestrito. Em 1989 esse era o tom. Assim como em 1978. A história dos Estados Unidos sempre foi de extremos.

Claro, Obama é o novo Reagan — ou o novo Carter, deus nos livre disso — na mesma medida que Nirvana foram os novos Beatles (comparação mais estúpida que eu consigo pensar, nos CINCO casos, então vamos mais uma, Nirvana foi o novo Carter). A pergunta é porque não existe uma trilha sonora digna de nota.

Certamente porque não estamos procurando. Ou porque ninguém tá interessado de verdade. Ou talvez seja questão de tempo, não sei. O album novo da PJ Harvey, que não é nenhuma novidade no cenário rock, deve ter vendido umas quinze cópias — mas certamente adquiriu tom profético depois do que rolou em Londres. Mas não vende. Música fantástica tem saído por aí, o que é frustrante é que não vende. Ninguém se interessa. Algumas das bandas que sairam de Savannah, aqui no Sul dos Estados Unidos, nos últimos cinco anos, são pelo menos tão massa quanto as que formaram o Big 4 nos anos 80 — e que, na época, lotavam arenas com 100 mil pessoas.

*Update: lendo isso aí em cima, eu tenho vontade de me dar um soco. Certamente tem muita coisa foda sendo produzida, é só olhar além do rockzinho aborrecido que o pessoal teima em insistir em ouvir, só a produção do Kendrick Lamar já vale mais que 2/3 de tudo que foi produzido nos anos 90*

Na medida que a geração X vai tendo seus filhos que não sobem pelas paredes (quem entendeu, entendeu) e criando barriga, a geração Y responde com um certo meh. Ao mesmo tempo, tem no meio dessa turma tem um pessoal que não tem nada de estúpido. Boa parte das tecnologias que a gente usa foram projetados, desenvolvidos e idealizados por gente com menos de 30 anos. Menos de 25, muitas vezes. Talvez aí esteja a resposta: o pessoal não tá mais usando guitarra, mas tá trabalhando nas interfaces de computador, tecnologia móvel, videogame e o diabo.

P.S.: Quando eu escrevi esse post, em 2011, eram os vinte anos do Nevermind.

Na época, eu estava nos EUA e o país passava pelo período de “recuperação” da recessão dos anos Bush com os planos de reaquecimento da economia do governo Obama.

É engraçado pensar que a gente testemunhou mais uma morte de Reagan desde então, talvez a morte definitiva, na eleição do Trump. Ali se coloca um prego final no otimismo Reaganite, e se adota um neo-populismo antiliberal como uma espécie de contra-cultura sub-urbana, branca e protestante, dos EUA.

Kurt Cobain, assim como Marshall Mathers III depois dele, foram exemplos do caráter incipiente dessa contra-cultura sub-urbana. O eleitor médio do Trump no mid-west, no rust-belt, se parece muito com o Kurt e com o Eminem: é um cara branco, entre 45 e 50 anos, filho de alguém que trabalhava na manufatura, com várias pessoas na família viciada em drogas (legais e ilegais) derivadas de opiodatos, e que não é, exatamente, pobre, mas vive uma vida infeliz, desconectada de comunidades políticas e sociais significativas.

Essa desconexão é vista por essa geração como uma grande traição. Uma traição da promessa de uma América que garantiria direitos sociais, previdência e comunidade, que garantiria um consenso pastoral e uma ordem social previsível.

O sentimento de alienação e de abandono que pessoas como o Kurt colocavam era uma espécie de história desse desgaste do consenso pastoral. Por um lado, o desgaste cultural de quem já se sentia outcast diante da grande narrativa da pastoral americana, e, do outro, o desabamento desse consenso pastoral criaram a mistura que eventualmente se tornaria instável o suficiente para produzir algo como a atual insurgência contra-cultural do meio-oeste Norte Americano (que é demograficamente muito parecido com Alberdeen, Washington).

O rust-belt que mais uma vez matou o Reagan, dessa vez matou por vingança. Francis Farmer finally had his revenge.

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