Vacinas, escassez e distribuição

Fabricio Pontin
Ensaio
Published in
6 min readJan 5, 2021

Ontem o pessoal no econotwitter teve um debate, que pelo que pude perceber começou com o Góes e o Comin, sobre a questão das prerrogativas distributivas de uma eventual vacina para a COVID. O debate me interessa em vários níveis, e achei que minha contribuição não cabia no formato de tweet, e, já que semana que vem devo participar de um debate na Via Marginal, com a Renata e a Ludmila, justamente sobre várias questões vinculadas com as vacinas, resolvi antecipar algumas posições por aqui, e ilustrar o que encaro como as principais contradições e desafios dentro do debate.

Pois bem, vamos lá. O Comin tem razão que em grande parte essa discussão surfa nos termos da tensão entre escolhas individuais e valores sociais expressada pelo Arrow, e também tem razão quando aponta para a insuficiência de modelos pareteanos para mediar essa tensão. O problema é: o que diabos quer dizer insuficiência de modelos pareteanos para mediação de tensões distributivas.

Na minha leitura, podemos pensar a literatura contemporânea sobre uso de paradigmas pareteanos para mediar critérios distributivos a partir de quatro pontos de partidas:

  1. Arrow: critérios pareteanos não estabelecem distribuições equilibradas para valores sociais amplos, na medida que não conseguimos mediar de forma “justa” a adequação entre titularidades individuais (escolhas livres) e valores sociais (direitos fundamentais). Para Arrow, o formato dessa mediação é sempre uma barganha — daí a impossibilidade de um pareteanismo democrático “livre”;
  2. Rawls: a posição de Arrow é apenas paradoxal se partimos de uma ideia distributiva material. Ao adotar uma perspectiva universalista e abstrata podemos mediar titularidades individuais a partir de um critério de racionalidade amplo que permite que pessoas pensem suas titularidades individuais de tal forma a projetar bens futuros coletivos — mantendo, ao mesmo tempo, o critério de universalidade e de não-intervenção (adaptados como os dois princípios, na TJ), para medidas distributivas, que depois são “corrigidos” em eventuais externalidades, por um princípio de redistribuição denominado “diferença”. A “diferença” mantém as titularidades individuais, mas condiciona estas a eventuais necessidades de compensação para quem foi acidentalmente excluído de deliberações na posição original (é um pouco mais difícil que isso, mas podemos discutir isso nos comentários depois)
  3. Calabresi: titularidades individuais são direitos alienáveis ou inalienáveis, mas a regra de alienação ou inalienabilidade precisa ser mediada com um critério público de compensação por eventuais perdas de direitos de alienabilidade — a regra de compensação, no entanto, obedece uma função pública de redistribuição para maior eficiência, na medida que a compensação por uma regra privada causa maior dano para titularidades individuais do que uma regra pública. Calabresi insiste na necessidade de compensar perda de direitos de compra e venda diante de regras de inalienabilidade (que é uma forma de privilegiar direitos individuais), mas a partir de uma regra de compensação pública (que é uma forma de controlar free riders e desigualdades distributivas no nível individual).
  4. Michelman: a redistribuição deve obedecer uma função de dano. Titularidades apenas são sociais quando elas implicam em algum tipo de tort, e por isso devem ser compensadas se e apenas se elas podem destruir ou são destruídas por algum exercício. Para Michelman, a regra distributiva e re-distributiva é apenas relevante quando o exercício de uma titularidade por A implica na destruição de uma titularidade para B — não havendo essa possibilidade de destruição, não há causa para intervenção em titularidades de qualquer natureza, por qualquer motivo. No entanto, titularidades tendem a se tornar torts em um contexto de livre exercício, sem regulamentação, daí a necessidade de modelos de mediação para exercício de liberdades individuais. O modelo de Michelman, de perto, é quase indistinguível do de Rawls, mas fala um economês um pouco mais fluente.

Em grande medida, as discussões que vi ontem surfam em pequenas modificações desses quatro modelos, tentando sustentar a possibilidade de exercício de uma titularidade privada para o direito de tomar uma vacina, se e apenas se esse exercício não afeta a eficiência ou possibilidade da titularidade pública do direito de tomar uma vacina. Não vi ninguém na bolha relevante defender um ponto libertário grotesco: que meu direito individual de tomar uma vacina deve ser protegido e garantido irrespectivamente dele causar dano para a prerrogativa pública da disponibilidade de uma vacina.

Mas o problema é o seguinte: a pressuposição dos colegas que defendem a possibilidade de mediação entre a disponibilidade da prerrogativa do exercício da titularidade de tomar uma vacina em uma rede privada e a efetivação do direito fundamental de tomar vacinas, partem, primeiro, de uma premissa de não-escassez, ou seja, de um jogo de soma zero onde existe uma zona de sobreposição de interesses (win-win), que aponta para a efetivação da prerrogativa do interesse privado de disponibilizar uma titularidade, junto com o dever do estado de garantir um direito.

Essa sona de overlap, de fato, existe para muitas titularidades, e em muitos casos a gente consegue inclusive ver como a disponibilização de uma regra de alienabilidade fortalece a possibilidade de exercícios coletivos — ou seja: a existência de um mercado privado melhor a existência de um mercado público. Muita gente aponta, com alguma razão, para educação e mesmo sáude como exemplos de mercados que melhoram quando existem em uma gestão mista.

No entanto, esse overlap presume paradigmas regulatórios para ter eficiência, e aí a coisa começa a complicar na discussão sobre vacinas. Vocês podem dizer que temos evidência que vacinas já existem na rede privada, e que eu posso exercer minha prerrogativa de comprar uma vacina contra a gripe, em uma rede privada, a qualquer momento, independentemente da disponibilidade dela na rede pública. Beleza, vocês estão certos. Mas essas vacinas não estão expostas a uma regra de escassez tão radical quanto a da COVID, não existe uma fila para ser definida, decidida e aplicada. O ponto aqui é: não existe uma ameaça a violação de prerrogativas públicas na disponibilização da prerrogativa de tomar uma vacina contra a gripe na rede privada.

O que a gente sabe sobre as vacinas para a COVID?

  • Elas são muito escassas.
  • Não temos critérios universais sobre quem deve tomar a vacina primeiro, nem quando, nem onde.
  • Não temos regras de compensação para quem decidir não tomar a vacina, nem para quem for obrigado a tomar a vacina (por qualquer motivo)

Estes três pontos não estão disponíveis para resolução a partir da atuação privada. O setor privado simplesmente não tem como resolver essas três questões. E aí? A compra do setor privado pode ser feita sem uma medida regulatória? Sem que o setor privado, ele mesmo, entre na fila para compra, priorizando, primeiro, a necessidade da efetivação pública dessa distribuição?

Sen e Nussbaum apontariam aqui, eu acho (e vou perguntar no twitter pro Comin, que sabe mais que eu sobre isso), para a necessidade de compreensão não-pareteana dessa questão. Primeiro: eficiência distributiva aqui não é uma função matemática, mas uma função de efetividade de direitos fundamentais. Pareto não serve para medir isso. A única coisa que Pareto vai nos dizer é que ao incluir uma regra de distribuição universal, a tendência da curva é que 30% dos atores de mercado sejam responsáveis por 70% da efetivação da medida, e daí a gente vive num país onde 15% da população tem acesso a esses 30% dos atores de mercado,e vocês fazem a conta sozinhos de quem vai ser vacinado, e como (e Adam Smith sorri no inferno porque ninguém se deu o trabalho de entender como a mão invisível re-afirma posições de desigualdade).

Se a gente encara a titularidade do direito de tomar uma vacina como uma titularidade pública, e inalienável, essa posição descrita acima fica inadimissível. E eu não sei como ela é evitável se a gente abre para o setor privado competir com o público para a efetivação do direito a vacinação em algo como a covid.

Mais uma vez, o nosso problema principal fica muito claro nessa discussão: a abordagem institucional não pode ser abstrata, e muitos dos colegas estão tomando uma perspectiva abstrata para a compreensão institucional ao defender a prerrogativa privada (ou a eficiência desta). De um ponto de vista Milliano, não fecha — nem precisa ir para o Sen. Mas acho que a gente devia, sim, lembrar do velho Sen e da ideia de um institucionalismo material: não dá para discutir distribuição e tudo mais sem olhar para a realidade material, pensando apenas em termos abstratos e curvas de mercado que não se aplicam ao tipo de titularidade que a gente tá avaliando.

--

--