Doze anos de detenção​

Perfil​ ​de​ ​um​ ​ex-detento

Aline de Campos
@alinecampxs
9 min readMay 16, 2018

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Fonte: Banco de Imagens do Google

BIGODINHO

Início de 1995, mês e dia não são precisos. Dezoito, quase dezenove anos. Sua primeira detenção — de muitas que poderiam ter sido, mas o santo forte o livrou da experiência. Seu nome? Reginaldo Gomes da Silva, vulgo Bigodinho. Esse é o relato de um adolescente no crime, adulto na penitenciária, maduro convertido.

Acanhado, mas ansiando por se abrir sem ser julgado, Reginaldo não aguentaria mais uma condenação. Condenação que enfrenta todos os dias daqueles que o enxergam simplesmente como um criminoso aposentado: “Será mesmo, redimido?” ; “Não dou um ano para voltar à vida de antes!”. Sentado na mesa redonda da cozinha de casa, sentia-se protegido em ser ouvido sem olhos de condenação, sem julgamentos.

Camiseta polo listrada (tons neutros de um azul-céu e cinza esbranquiçado, avessos à extravagância pela qual esteve acostumado a maior parte de sua vida), calça jeans e um costumeiro Timberland. Concentrado.

Assim nosso “bate-papo” — denominação que fiz questão de empregar ao lhe fazer o convite, pois entrevista soaria muito formal e até especulativo, dada sua condição — teve início .

Algo me chama a atenção: Reginaldo não possui tatuagens. Me surpreendo com sua resposta, que agora considero óbvia. Tatuagens marcam, ele não queria cometer o erro de ser reconhecido tão facilmente.

De seis filhos foi o segundo. Passou a infância na companhia de seus quatro irmãos (a irmã viria anos mais tarde) e primas. Sua mãe e seu pai tiveram uma união difícil, marcada por agressões físicas e desentendimentos.

Não reclama da infância que teve, não considera ter sofrido nenhum trauma. Sua principal lembrança desse tempo são as brincadeiras de menino e os castigos da avó, conhecida por Dindinha devido a suas habilidades como benzedeira.

Em 1991 o garoto experimentaria as mágicas doses de liberdade e poder. Aos 14 anos sentiu o vento soprar seu caminho junto à trilha torta e mais curta, onde permaneceu a maior parte de sua vida.

Seu primeiro furto? Não. Seu primeiro roubo. Reginaldo começou a fazer roubos de médio a grande porte em supermercados. Depois, à bancos e cargas. Todo o esquema era minimamente projetado. Fazia parte de uma “equipe” especializada no que fazia, tinham fontes, armamento, aliados e inimigos, muitos inimigos.

Faço o questionamento padrão nesses casos: foram as necessidades o motivo para ingressar no crime? A vulnerabilidade de ser um jovem negro periférico? Ou, então, a vaidade de um adolescente que não podia comprar o que queria?

Sincero e sem titubear, me responde que ser reconhecido e estar acima das leis, da vida ou da morte, sobretudo, ser temido, foi o que o atraiu e fez com que fosse tragado rapidamente pela criminalidade.

Um certo brilho nos olhos fez-se notar, ao detalhar quão prazeroso era ser a autoridade das ruas. Poder, dinheiro, carros, mulheres, noitadas no samba, a excitação de correr riscos.

Ainda garoto, encarou um revólver — não como mira, mas sim, como opressor. Claro e objetivo diz não ter sentido medo, pavor, culpa ou nenhum outro sentimento. Estava totalmente consciente de sua ação. Foi sua primeira execução. A primeira que testemunhou. A mesma na qual participou.

Seus companheiros eram chegados a arrancar o mal pela raiz — literalmente — , faziam jus a lei do “olho por olho, dente por dente”. Não tem a soma dos assassinatos que cometeu, porém, recorda aquele que o marcou durante todos esses anos, por ver uma mãe desesperada ao presenciar a execução do filho.

ALVO NA MIRA. SE TEM CORAGEM, ATIRA

Bandido que é bandido não assalta vizinhos de bairro. Regra primeira do estatuto das quadrilhas. Mas, como toda regra sofre desrespeito, um garoto magro, alto, de pernas finas e longas (que tinha habilidade em correr do flagrante, diga-se de passagem), era mestre em assaltar os moradores de seu bairro. Já tinha sido avisado quanto à possíveis represálias por suas práticas, mas a mão , e pernas , rápidas não o deixavam parar.

Dada a situação, a turma de Reginaldo decidiu agir, encurralou o magro na rua de sua casa com armas em punho. Ágil, como de costume, o garoto buscou abrigo dentro de sua residência. Os sete armados entraram, atiraram sem pena do rapaz de joelhos, implorando por sua vida. A mãe, aos prantos, intercedia por seu filho. Em vão. Execução. Sem choro, nem vela. As mesmas foram poupadas para os familiares no velório.

Nessa época Reginaldo morava no Jardim Vazame, em Embu das Artes, bairro onde passou sua adolescência e maior parte da vida adulta — quando não estava em detenção.

Com 15 anos de idade Bigodinho conheceu a FEBEM (hoje Fundação Casa), onde passou a adolescência, entre idas e vindas.

Frequentador das rodas de samba e bares regado a muita cerveja — vício que hoje assume sentir falta em alguns momentos — , sempre rodeado de mulheres, aos 16 anos recebe uma notícia: a então companheira Márcia anuncia sua gravidez. Entorpecido pela vida que levava, não sentiu euforia nem desespero, não pensou em nada. Para ele nada impediria sua curtição.

E, eis que aos 18 anos, no ano de 1995, teve seu primeiro encontro com uma penitenciária. Márcia, se mudou para a Bahia, sua terra natal. Cansou de esperar por uma mudança, que não viria. Desde então, pai e filha, nunca mais se encontraram.

153263

A penitenciária não regenera o cidadão. Tampouco, é uma faculdade do crime. O cárcere é uma experiência, na qual o preso aprimora o que lhe convém naquele momento de sua vida — , e infelizmente, a maioria, se depara com limitações, que por motivos diversos, dificultam a mudança de rumo. Sendo assim, aprender a se safar de uma próxima vez acaba por ser o foco principal.

O chuveiro frio virou terapia para o corpo calejado. A primeira noite, somente de cueca no chão frio; as seguintes, mal dormidas. Represálias gratuitas para diversão dos policiais e carcereiros. Furúnculos e diarreias, foram sintomas recorrentes. Como se estar à margem da sociedade não bastasse, todas as condições contribuíam para soterrar a dignidade daqueles homens.

Reginaldo não esqueceu do número da matrícula em que foi cadastrado na sua primeira passagem. A sequência 153263 não será apagada de sua memória. Tinha que gritar o número da matrícula nas contagens. Contagens, essas, que eram empecilho para o projeto de fuga.

Quanto mais bagagem criminal se tem, maior o potencial de influência de seus aliados na cadeia (presos e funcionários). Quanto mais influência mais benefícios, e maior infiltração nos esquemas de ponta. Após inúmeras tentativas fracassadas, o tão estudado plano de fuga é concretizado.

Questionado sobre as estratégias para conseguir sair da cadeia, Reginaldo detalha as ferramentas usadas: cabo de vassoura e ponta de alicate são alguns dos instrumentos utilizados para abrir passagem na cela, com o apoio de colegas mais pesados, que subiam em cima da furadeira improvisada para forçar a abertura do chão. O caminho é minuciosamente estudado.

Fontes de fora dão as coordenadas, fontes subornadas de dentro dão cobertura. Após algumas tentativas frustradas, o bando consegue fugir. Bigodinho passa cinco meses foragido, nesse período se relaciona com Yara, aquela que viria a ser mãe de seu segundo filho.

Mas quem poderia prever, o irmão de Yara paraplégico por tiros que quase tiraram sua vida, vê em seu cunhado o autor do ataque que o deixou sem andar. Sim, em uma de suas “faxinas” o alvo foi o irmão de Yara. A moça apaixonada não guardou ressentimentos e manteve seu relacionamento, para desgosto do irmão.

Antes de cometer a falha que o trancafiou novamente, teve uma ingrata surpresa. Mesmo procurado, o samba e a farra eram de lei. Bigodinho não saia desarmado, tinha muitos inimigos. Madrugada na roda de samba. Uma moto a toda velocidade com um piloto atirando. Foi isso que ele conseguiu ver antes de receber cinco tiros.

Levado para o Hospital Geral de Pirajussara, dá entrada com o nome do irmão Juarez para ser internado.

Dos noves dias que passou no hospital, quatro foram na UTI. Dos 5 tiros, 2 atravessaram o braço e 3 balas ainda alojadas em seu corpo. Projéteis que entraram pela traqueia e estão um em sua coluna e outro na testa.

As noites frias fazem lembrar, os projéteis chegam a latejar no inverno, incômodo que provavelmente carregará por toda vida: “Quando me olho no espelho e vejo esse caroço na minha testa me lembro da vida que não quero mais levar, vida que quase perdi e tive a chance de tentar de novo”.

Quanto a Yara, se manteve ao seu lado durante toda sua recuperação. Com a família contra, a moça permaneceu mesmo quando Reginaldo foi preso, mais uma vez. Durante os cinco meses foragido, continuou no crime, isso não o intimidou. Reginaldo foi preso por azar, segundo suas palavras.

Estava na costumeira roda de samba quando policiais entraram pedindo que diminuíssem o volume do som. Como é de praxe, toda uma vistoria foi realizada. Não teve como correr. Os policiais revistaram todos no local, e ele, como sempre armado, rodou.

Outra vez trancado e além do agravante da fuga, mais uma passagem: porte ilegal de armas. Um detalhe importante: nunca respondeu pelos homicídios que cometeu. A maioria de suas passagens foram por roubo.

Dessa vez, foi mais difícil, passou dias e noites sub-humanas na penitenciária de Tremembé. Choques, surra, humilhação. Quando não passava por elas, as presenciava. Os policiais entravam nas celas descendo o cassetete à torto e à direita.

Depois, levado para Bauru, recebia visitas de Yara — que engravidou numa delas — , e de alguns familiares. Assume o quanto gostava da vida que levava, o quanto o samba e a cerveja lhe davam prazer e que, realmente, não pensava em mudar de vida.

Enquanto esteve preso recebeu a notícia que amigos filiados ao PCC vingaram seu atentado. Encontraram o autor dos disparos, que por sua vez, não teve a mesma sorte. Morto. Reginaldo era respeitado, o autor dos disparos passou a se gabar achando ter finalizado o serviço. Erro fatal.

O ENCONTRO DO “EU”, ENTÃO DESCONHECIDO

Nas penitenciárias pelas quais passou Reginaldo influenciou detentos. Com experiência, aprendeu a usar sua inteligência no crime com maestria. Após 5 anos e meio de detenção passou a cumprir regime semiaberto, fez um trabalho com confecção de cintos.

Nunca foi religioso, não pensava na existência de um ser superior, não pensava no fim. Até que foi surpreendido em sua última detenção — na qual cumpriu 7 anos. Homens convertidos a fé evangélica passaram a lhe procurar, transmitiam palavras, informações que, segundo ele, ninguém mais sabia a não ser ele mesmo.

Dessa maneira, começou a se sentir tocado. Como sabiam coisas íntimas dele, coisas que não dividiu com ninguém? Bem, mesmo sem estas respostas decidiu conhecer mais sobre a religião dos companheiros de cela.

Reginaldo estava prestes a conquistar sua liberdade quando um guarda o acusou de desacato. Situação recorrente. Nos 12 anos que esteve preso, viu muitos amigos punidos sem terem feito absolutamente nada. Com ele não foi diferente. Passou três dias no que, em sua penitenciaria, chamavam de “castigo”: a solitária. Estratégico e ansiando por sair de lá, manteve a calma, cumpriu o castigo e não se complicou ainda mais.

Em liberdade há pouco mais de 5 anos, não usa mais seu característico bigode. Não esquece a primeira vez que os policiais o rasparam. Não deixou crescer, primeiro porque sua doutrina não permite homem barbado, segundo — e aí confesso ser apenas uma especulação — , por não querer se assemelhar àquele homem do passado.

Yara não aceitou sua religião e ainda proferiu que logo ele voltará a ser o homem que era, que logo estará “comendo bandeco” de novo (gíria utilizada para se referir a ser preso). Sua companheira amava o Bigodinho. O “eu” que ele deixou para trás.

Pergunto se tem arrependimentos e é categórico em dizer que não. Acredita que o estágio de maturidade adquirido se deve às suas experiências, não se arrepende da vida que teve.

Sente falta de ter contato com seus dois filhos, que atualmente não vê, mal os conhece. O bebê que teve com Yara hoje tem 14 anos, recém completados.

No início de 2015 sofreu com a perda do irmão caçula. Rafael, de 33 anos, cometeu suicídio, sofria de depressão e decidiu pôr um fim a vida. Reginaldo, prefere não abordar o assunto, ainda recente, mas deixa sua visão sobre o acontecimento: “Era o tempo dele”.

Vive sozinho numa casa alugada em Taboão da Serra, próximo a familiares. Sua família nunca o abandonou nessa jornada. Faz serviços informais em construções e na semana na qual concedeu a entrevista estava vibrando com um novo emprego, agora fixo, em uma construtora.

Aos 38 anos, não tem sonhos. A falta de perspectiva o acompanha desde sempre. O único desejo que tem é o de se manter forte para nunca mais voltar a vida do crime. Seguidor da Igreja Pentecostal, ora a Deus para que o conserve nesse caminho. E finaliza: “A carne sempre está em conflito com o espírito”.

Nota: entrevista concedida em 2015.

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Aline de Campos
@alinecampxs

Jornalista, mestra em Ciências Sociais. Pesquisadora de relações raciais e de gênero, política e ativismo nas redes sociais. -> Contato: alinecampxs@gmail.com