thamires mattos
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9 min readNov 8, 2019

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Como surgiu o Dia da Consciência Negra?

Muitos sonham em conhecer novas culturas e até mesmo morar fora de seu país de origem. Até que esse desejo se conclua, há muito trabalho a fazer. Entretanto, mesmo com todo o preparo para essa grande mudança, sempre há um choque de adaptação. Ainda bem que os preparativos conseguem diminuir esse impacto.

Porém, nem todos têm a chance de planejarem seus futuros. Foi o que aconteceu com os negros africanos. Eles foram forçados a deixar seus países de origem e se tornarem escravos em outro continente. Voltar para casa estava fora de cogitação. A saudade não era capaz de expressar o que eles sentiam por suas terras natais. Foram trezentos anos de humilhação, mas, não sem luta.

Em 1970, o Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial (MNU) começou a reivindicar um símbolo que representasse a batalha enfrentada pelo negro. O Quilombo dos Palmares e seu líder, Zumbi, foram escolhidos como símbolos de resistência.

A figura de Zumbi começou a ganhar força por meio de livros como O quilombo dos Palmares, de Edison Carneiro, e Palmares, a guerra dos escravos, de Décio Freitas. Ambos contribuíram para compreender a situação na qual os negros viviam no período escravista. A partir de 2011, quando foi sancionada a lei 12.529, passou-se a celebrar o Dia Nacional da Consciência Negra, em 20 de novembro.

Essa é uma tentativa de homenagear inúmeras pessoas que tiveram suas vidas arrasadas pela falta de liberdade, sofrendo danos irreparáveis. É também um convite à reflexão sobre a importância que o negro tem em nosso país, por meio da cultura, economia e formação de bases sociais.

A riqueza dos europeus que vieram para o Brasil há mais de 500 anos foi construída através de mão-de-obra escrava; uma relação de poder entre brancos e negros baseada em teorias sem fundamento. Após anos de luta, em 13 de maio de 1888, foi assinada a Lei Áurea no Brasil. Ela determinou o fim da escravidão. Os negros, agora, estavam livres. Problema resolvido ou apenas mudança de contexto?

Passaram-se 131 anos desde a abolição da escravidão no Brasil e o negro ainda vive excluído. Ainda na época, muitos não conseguiram fugir da vida de escravos. Como não tinham qualquer instrução, alguns acabaram marginalizados, mesmo após terem sido libertos. Não tinham onde morar e precisaram buscar lugares alternativos para viver — daí surgiram as favelas. Além disso, a sociedade não aceitava os negros, o que provocou o isolamento do grupo social. “Ainda falta muito para a incorporação do espírito dessas leis. Um dos pontos que causa esse mau funcionamento é a desvalorização da população negra, tendo um dos indicadores econômicos mais baixos de toda a sociedade”, explica Elder Hosokawa, mestre em História Social pela Universidade de São Paulo (USP).

O doutor em Antropologia do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Gabriel Banaggia estabelece algumas medidas que a sociedade pode tomar para evitar esse isolamento. “O mais importante é a efetivação do direito constitucional à ocupação e uso de seus territórios tradicionais. Assim, que esses grupos continuam realmente capazes de manter os estilos de vida socioculturais que desejam para si próprios”, pondera.

O racismo se tornou estrutural e velado na sociedade brasileira. Os negros ganham menos, compõem 70% da população carcerária, têm menor status social e estão associados a estereótipos negativos. Todos esses pontos só confirmam como a nação não evoluiu no processo de igualdade racial. Desse modo, Banaggia destaca atitudes que brancos devem tomar : “Podemos tratar de mobilizar as posições de privilégio que ocupamos para que o racismo não se reproduza cotidianamente, tratando de não assumir protagonismo indevido. Finalmente, podemos buscar abrir mão, ou, ao menos, compartilhar espaços de discurso e de poder com pessoas não brancas, bem como procurar fortalecer economicamente iniciativas de coletivos que representem racialmente outras populações”.

As mudanças ocorridas desde 1888 são muito escassas e deveriam ser mais significativas. Por mais que grande parte da população tenha noção de que o preconceito racial existe, é muito fácil retomar a discussão da desigualdade racial em uma data específica e não lembrar do sofrimento que afrodescendentes enfrentam todos os dias em escolas, faculdades, trabalho, espaços públicos, entre outros. “Essa data [Dia da Consciência Negra], que está regularmente no nosso calendário, é essencial para retomar as discussões da desigualdade étnica, não nos fazendo esquecer da história e sofrimento que o povo negro passou”, acrescenta Hosokawa.

A dívida histórica de brancos com negros é ponto de discussões acaloradas. Muitas pessoas acreditam que brancos não devem nada a outros grupos étnicos, como negros e indígenas, ignorando todos os problemas vividos por eles ao longo do tempo. Banaggia esclarece que essa dívida não é somente histórica, e que esse pensamento dificulta a compreensão da sociedade atual. “O racismo continua a se reproduzir de maneiras distintas no presente, e, em alguma medida, de forma incomensurável com sua história. Ou seja, é inócuo se ancorar em qualquer história pregressa para justificar a inação presente, seja em função de uma ideia ingênua de progresso, seja de uma noção absurda de um passado romantizado. Abandonar a recusa em ver o problema é o primeiro passo para solucioná-lo”, conclui o antropólogo.

Lutar contra aqueles que querem prejudicar e desmerecer a população negra é essencial não só para os que são parte da causa, como também para o real progresso de um país que prega respeito e justiça.

Em 1665, o líder Zumbi dos Palmares foi assassinado em uma das batalhas entre colonos portugueses e o Quilombo. Passados 330 anos do ocorrido, ele foi oficializado herói nacional, simbolizando a resistência contra o racismo, a opressão e as desigualdades sociais. Assim, foi construído o “Dia da Consciência Negra”. Consciência Negra também é uma expressão que indica a percepção histórica e cultural que os negros têm de si mesmos. Confira o depoimento de algumas pessoas sobre sua etnia:

“Eu olho no espelho e penso comigo: eu sou negro”. Danrley Júnior de Souza Schwengber, de 22 anos, é natural de Florianópolis (SC). Ele sofreu preconceito desde pequeno, mas só se conscientizou de sua raça quando virou universitário. O contato com artigos e pessoas que estudavam sobre o assunto o fizeram construir pensamentos sobre sua identidade. Por isso, Danrley acredita que ser negro envolve a ascendência e a identificação. Sua mãe é negra, e, dado ao conhecimento que tem de si, se considera negro também.

A própria sociedade, por meio da conduta racista, fez Claudenice Gois acreditar que precisava valorizar sua raça. Ela se considera negra com alegria, porque herdou de sua família a sua cor. Desde criança, sua identidade foi forjada com orgulho: cabelos crespos e pele cheia de melanina. “Nunca tive outra concepção”, revela.

Gabriel da Silva Agostinho tem 23 anos e nasceu no sul do Brasil, em Criciúma (SC). Ele conta que ser negro é carregar no corpo uma carga cultural e histórica muito grande, e que sua raça está relacionada com a sua biologia. “Eu não me considero negro, eu sou negro!”, afirma. Essa consciência surgiu após estudos sobre o conceito de ideologia. Gabriel explica que não é preciso se considerar negro para o ser — basta olhar sua carga genética.

Jamily Ricardo da Silva é uma adolescente de 14 anos de idade e descobriu cedo sua identidade. Natural de Niterói (RJ), ela nasceu em uma família onde a maioria é negro. Esse contexto, somado a seu autoconhecimento, a fizeram consciente de sua etnia.

O roraimense Lisandro Bacchus Boston tem 27 anos e é convicto da sua identidade. “Ser negro é ser eu, sem mudar jeito ou forma de pensar por causa da cor”, relata. Ele conta que, aos 11 anos, apanhava de seus colegas de classe por causa de sua cor. Nessa situação, passou a enxergar o racismo, e se encontrou na realidade do que significa ser negro.

A mineira de São Pedro do Suaçuí Maria Amélia Costa brinca que a vantagem em ser negro é poder esconder sua idade por conta da cor. Ela tem 56 anos, e passou a se considerar negra a partir dos 15. Até então, se via como “morena”. Hoje, assume com alegria que faz parte da população negra.

“Para mim, o ser negro é um motivo para agradecer a Deus pela oportunidade de existir, é transpor as expectativas que esta cultura alienada, extravagante e hipócrita quer impor à comunidade Black do Brasil! ”, exclama Solion Faria Balthazar. Além de se considerar negro, torce pelo avanço da prosperidade da raça, não como um grupo segregado, mas como qualquer cidadão que tem direitos iguais. Solion é consciente de sua identidade porque nasceu em um lar onde a família celebrava sua etnia.

Natural de Belo Horizonte (MG), Naide Rodrigues Celestino tem 21 anos e considera os seus traços genéticos o principal motivo por se considerar negra. “Eu comecei a ter consciência da minha raça a partir do momento que eu fui crescendo e amadurecendo como pessoa. Daí, entendi o histórico dos meus antepassados, o peso cultural que isso traz nos dias atuais, e que eu faço parte dessa história também”, explica.

Algumas práticas culturais de matriz africana fazem parte do nosso dia a dia, e, às vezes, nem percebemos. Confira:

Samba

Um cartão postal da música brasileira, sem dúvidas, é o samba. Conhecido pelo mundo inteiro por estar presente, principalmente, no carnaval carioca. Mas nem sempre o samba esteve rodeado de glamour. O ritmo tem suas origens nos antigos batuques trazidos pelos africanos, quando vieram ao Brasil como escravos dos portugueses. Esses batuques eram, em sua maioria, associados a elementos religiosos, sendo uma espécie de comunicação entre eles. Hoje, o ritmo do samba está na dança. É considerado, inclusive, uma forma de manifestação político-cultural, como vemos nos famosos desfiles das escolas de samba em São Paulo e no Rio de Janeiro.

Feijoada

Tradicional nas refeições brasileiras, a feijoada também chegou às terras tupiniquins graças à cultura africana. Apesar de não ser um prato original, mas, sim, uma mistura de influências devido à mescla de culturas encontrada no Brasil, há quem diga que a feijoada nasceu nas senzalas. Os escravos usavam restos de comida dos nobres portugueses e misturavam com o seu feijão preto, de origem sul-africana, que fazia parte da dieta dos nativos ainda em seu continente.

Capoeira

Declarada pela Unesco como patrimônio imaterial da humanidade, a capoeira é uma expressão cultural bastante praticada no Brasil, principalmente na região Nordeste. Ao som do Berimbau, ela foi trazida pelos escravos. Em sua história, carrega muitos preconceitos enfrentados por praticantes do ritmo durante o século 19. Mas, mesmo com leis que proibiam a prática, se manteve de geração em geração. Os movimentos de força e habilidade nas pernas eram praticados pelos escravos como lazer no decorrer de seus pesados trabalhos. Na época, quem a praticava apanhava severamente de seus “senhores”. A fama da capoeira começou a melhorar graças ao espanhol Adolfo Morales de Ios Rios Filho, que publicou artigos sobre o tema no jornal Rio Esportivo, em 1926.

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