O livro MANIAC, de Benjamín Labatut

Bernardo Monteiro
Alto-falante de formiga
5 min readJan 21, 2024

Por que precisamos nos desapegar de nossas certezas, e reflexões conexas sobre colaboração e confiança

MANIAC, de Benjamin Labatut, é uma obra de ficção em que personagens reais narram fatos reais sobre a vida de John Von Neumann, criador do primeiro computador digital.

O livro inicia no capítulo "A Descoberta do Irracional", em que Paul Ehrenfest, em 1933, inconformado pelo avanço do nazismo e pela perda de controle do conhecimento da física pelos próprios físicos, mata seu filho e se suicida logo no primeiro parágrafo, pondo fim à insegurança e ao desespero potencializados por uma depressão profunda. Em 1931, Ehrenfest escrevera a Niels Bohr: “Cada nova edição da Zeitschrift für Physik ou do Physical Review me lança em um pânico cego. Eu não sei absolutamente nada!”.

Logo o autor transfere o foco da história para a vida de John Von Neumann, desenvolvendo-a até um pouco além de sua morte, chegando à Inteligência Artificial (AI) nos dias de hoje, aplicada ao jogo de Go. O assunto “AI aplicada ao Go” é pertinente não só porque Neumann nos deu o computador digital, mas também porque foi um dos principais desenvolvedores da Teoria dos Jogos.

Embora a Teoria dos Jogos, fundamentada na matemática, tenha levado a conclusões que recomendavam agressões de alto impacto destrutivo, durante o início da Guerra Fria por exemplo, esse mesmo assunto “teoria dos jogos” já me levou ao conhecimento de que, ao menos na vida em silício, algoritmos colaborativos e otimistas, como o “Tit for Tat”, ou até versões mais altruístas, têm mais sucesso em jogos como o do "dilema do prisioneiro" de várias iterações (IPD — iterated prisoner’s dilemma), superando os algoritmos mais vingativos, intolerantes ou egoístas.

MANIAC é um daqueles livros fundamentais que formam memórias que se sustentam por inúmeras conexões racionais e afetivas com outras memórias importantes.

Benjamin Labatut vem escrevendo, não só na obra MANIAC, sobre a perda de controle humano sobre o conhecimento científico. O suicídio de Paul Ehrenfest, após assassinar o próprio filho, abre essa obra caracterizando a fronteira do conhecimento como a beira de um abismo, onde podemos cair, onde alguns se jogam, por vezes levando consigo pessoas amadas para poupar-lhes a dor que eles imaginam ser evitável apenas pela morte.

Por outro lado, esse desespero poderia ser evitado se fôssemos educados para a contemplação e aceitação da transitoriedade, da finitude, da ausência de controle humano sobre os fatos, e sobre a interconexão de todas as coisas. A ilusão de controle sobre o universo seguida da quebra dessa ilusão é a frustração que nos joga no abismo. Se trocamos a necessidade de certeza pela necessidade de confiança, tudo muda.

A certeza calculada, fruto da mais sofisticada computação, que serve bem à competição, será sempre falha, podendo gerar ganhadores mas sempre produzindo uma grande quantidade de perdedores. A confiança bem nutrida e cultivada, sem a impossível certeza, é o que justifica e alimenta a colaboração, e pode nos levar ao sucesso coletivo. Isso não está no MANIAC de Benjamin Labatut, mas são as associações que minha mente produz a partir desse livro tão estimulante, e de outras leituras anteriores.

Não por acaso, ao terminar MANIAC comprei outro livro chamado A Evolução da Cooperação, por Robert Axelrod, um matemático de Yale que se tornou cientista político na Universidade de Michigan, e aplica teorias colaborativas a situações de guerra e de política contemporânea. Será uma de minhas próximas leituras.

A discussão sobre qual é melhor, a competição ou a colaboração, ou sobre as vantagens que derivam da confiança mas não da certeza, não trazem questões simples nem deveriam nos levar à condenação da competição ou da certeza. A competição e a certeza têm utilidade, mas a colaboração e a confiança estão mais perto de serem virtudes humanas.

Diz -se que a ciência, ou as leis da física, por exemplo, funcionam independentemente da opinião que se possa ter sobre elas. Já a boa tecnologia, anunciam seus arautos, ela simplesmente funciona. Mas no fundo sabemos que isso é conversa de vendedor. No dia da demonstração do novo gadget ou app para a imprensa geek, todos ficam apreensivos pensando se alguma falha ocorrerá, pois com os usuários falhas certamente ocorrerão, justificando séries intermináveis de atualizações de hardware e de software com incontáveis correções.

Eu não reduziria as falhas da ciência à mesma categoria das falhas da tecnologia. Mas precisamos entender que as leis da física, por exemplo, não são puras verdades sobre o universo. Se temos por exemplo um conjunto A de equações que descrevem a mecânica de corpos em nosso dia a dia, e um conjunto B de equações que também descrevem a mecânica de corpos em nosso dia a dia, mais a mecânica de corpos celestes, e que esses dois conjuntos A e B de equações têm fundamentos e características bem diferentes, temos que admitir que ao menos um dos fundamentos desses dois conjuntos A e B está errado, e que possivelmente os fundamentos dos dois conjuntos A e B estão errados, mesmo que sejam úteis e nos ajudem a fazer boas previsões. O conjunto A a que me refiro é a mecânica de Newton e o conjunto B é a mecânica com base na Teoria da Relatividade.

Qualquer certeza portanto é um artefato, fadado a decepcionar em algum momento. A certeza só é admissível quando as margens de erro são desprezíveis no caso concreto. Já a confiança, que é falha por natureza, ela é necessária justamente na ausência de certeza.

Já criamos algumas soluções tecnológicas para substituir confiança por alguma "certeza", como na tecnologia blockchain apresentada ao mundo em 2009 no artigo que descrevia o Bitcoin. Esse tipo de tecnologia, que resolve brilhantemente o "Problema dos Generais Bizantinos", e é considerada por alguns como a chave para um mundo mais justo e menos desigual, ainda é muito limitada em seus efeitos concretos. De forma semelhante, a Inteligência Artificial, que se desenvolve e se populariza deslumbrando a grande maioria de nós, e que pode ter desempenho excepcional em um jogo de xadrez ou de Go, ainda não é capaz de superar nós humanos em um sem número de atividades, e sobretudo, não tem a nossa flexibilidade de comportamento, qualidade das mais importantes para caracterizar a verdadeira inteligência. Sem a flexibilidade dos humanos, a inteligência artificial talvez não passe de pseudo inteligência.

Além da flexibilidade, outras importantes características humanas são a colaboração e a confiança. Uma questão que MANIAC deixou comigo é se desenvolveremos tecnologia suficiente para produzir certezas com baixíssimas margens de erro, que dispensem a confiança entre as pessoas, por meios diferentes da tecnologia blockchain. Outra questão é se essas tecnologias e certezas dispensarão as interações entre seres humanos ou se nos levarão a níveis de colaboração e organização ainda mais complexos e ricos.

O que me parece é que a colaboração e a confiança não são simplesmente úteis ou benéficas, são necessidades humanas básicas, sem as quais não nos sentiríamos realmente vivos. Por isso fico tão entusiasmado com esse assunto, despertado admiravelmente por Benjamín Labatut em seu livro MANIAC, uma excelente leitura.

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Bernardo Monteiro
Alto-falante de formiga

Advogado e biólogo por formação. Cozinheiro por paixão.