Pedra na Cruz

Bernardo Monteiro
Alto-falante de formiga
3 min readMar 4, 2024
Imagem gerada por inteligência artificial a partir de prompt do autor, Bernardo Monteiro

1986. Outubro. Uma quinta-feira. Dezoito horas. Linha 241. Viação Redentor. Uma estudante entre uma centena de passageiros. O motorista engata a primeira, o câmbio grita com o atrito das engrenagens. O ônibus avança pouco, aos solavancos. O motorista tenta acelerar, mas o motor demora a responder. Estrada Grajaú-Jacarepaguá. O ônibus começa a subir pela estrada, do Grajaú para Jacarepaguá. Ao engatar a segunda, quase para. Pesado. Lotado.

Gente nos degraus das escadas das portas. Gente quase caindo no colo do motorista. O motor gira fraco até ganhar, lentamente, um pouco de torque. Engata a terceira num tranco, o motor aguenta por três ou quatro segundos. Volta à segunda marcha. E assim vai avançando pelo asfalto, ladeado por casas de alvenaria, tortas, precárias. Tijolo aparente. Poucas janelas. As paredes, quando emassadas, raramente têm pintura.

A estudante vê as crianças brincarem no acostamento. Borracheiros e lavadores de carro trabalham mais adiante, no acostamento. Bares servem cerveja e cachaça em mesinhas bambas ao longo do acostamento. Um homem sem camisa abana uma churrasqueira fumegante, mais acima, no acostamento. Da janela do ônibus ela vê as cenas que se desenrolam numa pista, o acostamento, na qual parece faltar uma dimensão.

A estudante acompanha a corrida de rolimã, ladeira abaixo. Ladeira acima, outro carrinho de rolimã, com um caixote de madeira acoplado, carrega mantimentos, empurrado pelas pernas finas que se alternam em passos largos e mais rápidos que o giro do motor do 241. Esquerda tic, shum; direita tic, shum; esquerda tic, shum; direita, tic, shum… com uma destreza fácil para quem dança hip hop muito além do passo tic, tac, toc. Mas o 241, Redentor, arrastando sua carroceria mal acabada, de rebites cansados, mal se balança pelos buracos da estrada.

As barras de aço polidas por mãos calejadas. Um passageiro apoia a cabeça numa barra vertical e tenta cochilar, em pé. Encosta sua testa engordurada na mão de outro passageiro, que a recolhe e a transfere para o teto, evitando cair sobre os outros nas curvas, freadas e trocas de marcha.

A estudante se assusta: o ônibus mais que lotado se aproxima do ponto de ônibus onde pessoas fazem sinal. O motorista mantém o ritmo, e, lento, vai passando, passando… Os de fora gritam, xingam o motorista. Acompanham o passar do ônibus. Crianças se abaixam, pegam pedras no chão. O ônibus passando. As crianças arremessam as pedras. Estilhaços da janela voam sobre os passageiros. Uma pedra atinge um homem na cabeça, que começa a sangrar. As crianças gritam e fogem pelo asfalto. Adultos no ponto de ônibus gritam para as crianças voltarem, e xingam o motorista novamente. O homem que cochilava, acorda, levanta a cabeça e abre os olhos. Olha para um lado e para o outro, quieto. A estudante sente alguém boliná-las por trás. Uma senhora grita "acelera, motorista! Não dá mais ninguém aqui não!"

Na confusão, um grito, um corpo a sangrar,
outro, no caos, aproveita para tocar
uma jovem, perdida, sem como escapar,
no corredor do ônibus, a dignidade a se aviltar.

Da calçada para o asfalto, um jovem corre, sobe no para-choque dianteiro e se pendura nos limpadores de para-brisa. Alguns se agarram pelo lado de fora das portas, com as mãos nas barras laterais. Tentam forçar a abertura das portas pneumáticas. Um deles consegue entrar e puxa um ou outro para dentro também.

O ônibus chega ao topo da serra e começa a descer para Jacarepaguá. Em um instante o motorista acelera ladeira abaixo. Aqueles pendurados pelo lado de fora seguem por quase quatro quilômetros de descida.

Lá fora, o desespero, a luta para entrar,
em cada curva, um sonho a se quebrar.
O Cristo, imóvel, do alto a contemplar,
sua indiferença espelha a da Viação a rodar.

Em pedra, o Redentor, uma cruz, a se eternizar,
no morro, a Viação, sua via sem alterar.
Surdos ao clamor daqueles a implorar,
que alguém os leve para outro lugar,

Quem está de fora quer entrar.

Quem está dentro quer mais do que um pouco de ar

E a estudante diz baixinho: "eu joguei pedra na cruz… só pode ser"

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Bernardo Monteiro
Alto-falante de formiga

Advogado e biólogo por formação. Cozinheiro por paixão.