With Eyes of Red

Matheus Camargo
Alusória
Published in
10 min readApr 26, 2022

uma cena em chamas

Lucy caminhava apressadamente pelas calçadas da Avenida E. Blake, ao sul da cidade. Ela continuava irritada com Grey e Fausto, o que apertava seu passo. O ar gelado e seco lhe cortava o rosto quente, enquanto tentava encobri-lo com o cachecol. O salto de suas botas marcavam a passada, tentando acompanhar o ritmo da música em seus fones.

Não tinha certeza há quando tempo tinha saído de casa, e sequer percebeu o quão longe já estava. Seus olhos estavam fixos no horizonte distante, avermelhado e cada vez mais envolto na escuridão. Lucy já notara o movimento diminuindo; felizmente, como ela pensava. Tudo a irritava. O frio, a calçada irregular, o cachecol caído, o som da rua ao fundo. E ela odiava se sentir assim.

Os baixos prédios da Cidade Baixa passavam ao seu redor. As luzes dos apartamentos nos andares de cima contrastavam com a escuridão das vitrines abaixo. Alguns bares e restaurantes, numerosos na Cidade Baixa, eram os únicos estabelecimentos que quebravam esse padrão. Mas o ânimo das pessoas era bom, e o ambiente sempre a contagiava de certa forma. O distrito era o seu lugar favorito na cidade. Costumava passar mais tempo lá o que no próprio Rosa-Carmesim, onde morava. Era na Cidade Baixa que ela sempre procurava refúgio. No entanto, os fones de ouvido a isolavam daquilo tudo. Era diferente. Lucy sentia um calor que não condizia com a temperatura, e ela não conseguia parar de andar. E andou a perder de vista suas costas.

O passo já não era tão apertado. A tensão dos ombros e a força com que os dedos apertavam suas mãos resultavam mais do frio do que de seus sentimentos. A Avenida Blake havia ficado mais estreita, conforme adentrava o distrito da Madeira. Não era um bom lugar pra se estar. Lucy sequer percebeu para onde estava indo, sua cabeça estava perdida entre o que deveria ter dito, e do que não queria ter ouvido.

Parou, chegando perto de uma esquina, e procurou entender onde estava exatamente. Mas não haviam placas nos cruzamentos. A paisagem já era bem diferente em relação ao resto da cidade com a qual estava acostumada; as ruas eram estreitas, algumas até demais, margeadas por úmidas calçadas de pedra. As casas, quase todas de madeira, começavam a se amontoar, algumas espaçadas apenas por pequenos becos. Suas cores escuras devoravam boa parte da parca luz da rua. Lucy sabia que estava lá só por raiva. Ela olhava mais em volta agora, e decidiu fazer a volta ao redor de uma daquelas quadras; afinal, dar meia volta seria humilhante.

A luz da rua era fraca, o asfalto da avenida cedeu lugar na paisagem para o paralelepípedo irregular. Escorregadia, a calçada de pedra a convidava ao deslize. Lucy continuava andando, mas não via nenhuma rua que fosse bom retornar, e a maioria pelas quais passava eram escuras ou sem saída. Nenhuma avenida ou rua comercial sequer. Algumas, de chão batido, adentravam a escuridão sem destino visível. As casas pioravam suas estruturas, algumas chegavam a ter lonas cobrindo partes faltantes do telhado.

Ela já procurava um lugar minimamente iluminado e, quem sabe, movimentado no qual pudesse parar e encontrar um caminho de volta no celular. A internet não funcionava direito no Madeira, e parar em qualquer ponto não era opção. Aquela situação causava em Lucy um profundo desconforto. Aquela luz, aquele horário… Tirou discretamente os fones, aproveitando para checar se o sinal tinha melhorado, mas parecia pior. A face intimidadora do bairro lhe incomodava menos que a consciência da sua teimosia. A dela, sim… mas e a de Grey? Por que ele insistia em encontrar Merklen?!

E de repente, um assovio.

Lucy sentiu que era com ela e, por reflexo, olhou na direção do som. Sua expressão estava tomada de raiva, de novo, e nojo. E o que ouviu conseguiu piorar ainda mais essa sensação:

— Que brava! Aposto que melhora com um sorriso!

Era do outro lado da rua.

Três homens, apoiados numa mureta. Dois pareciam cochichar enquanto riam, segurando copos de plástico nas mãos. Pelas roupas, bebiam algo que os esquentava razoavelmente. O terceiro a encarava, sorrindo, como se esperasse uma resposta. E Lucy tinha várias. Mas antes que pudesse escolher uma delas, uma mistura de temor e impotência percorreu-lhe o corpo como um raio. Ela voltou a cabeça para a frente, tornou a cobrir parte do rosto com o cachecol e, involuntariamente, aprumou o passo.

Sua mandíbula pressionava os dentes. Os músculos estavam tensos outra vez. Era agoniante. Não, pior. Muito pior. Era, também, humilhante. E, apesar de tudo, ela não podia fazer nada, além de sair dali. Continuava a caminhar, tensa, abrindo e fechando abas no celular, esperando que funcionasse. Errava os botões, pois sua atenção estava na rua. O sinal era ruim, o aplicativo não conseguia rastrear sua posição. Mandou-a virar uma esquina que não parecia dar em lugar algum. Lucy parou por um momento e tentou inserir manualmente onde estava, posicionando-se no mapa.

Só por um momento.

E nesse momento, ela sentiu uma mão puxá-la pelo braço.
— Não sabe pra onde ir, princesa? A gente tem um lugar pra ti — eram os mesmos três. Um só ria, enquanto outro fazia um gesto com a mão. — Que foi? não preci… ahn?!
Lucy arrancou o braço da mão dele, com força mais que o suficiente, e só se permitiu dizer “sai, me deixa em paz”. Ela ainda deu alguns passos longos, enquanto seus olhos procuravam… alguém. Qualquer pessoa, acreditando que a presença de alguém pudesse constrangê-los do que quer que fosse.
— Viu só, Gus? Na boa vontade não adianta. — e ela ouviu eles andarem atrás dela, e pensou em correr. Mas para onde? Aliás, não deveria ter pensado, apenas corrido.

Lucy foi agarrada pelo braço. Tentou, em vão, se desvencilhar.
— Me larga! Me solta!! — ela gritava. Fazia força com os braços, quase se debatendo. Tentava movimentos bruscos e aleatórios, na esperança de que se soltasse de alguma forma.
— Solta! Me la… —
— Shh, sem escândalo — disse um dos agressores, empurrando a mão contra sua boca. — a gente querendo ajudar e tu fazendo escândalo na rua?
Ela sentiu outra mão tocando-a no quadril, que escorregou pela coxa e subiu novamente pela bunda. Quanta repulsa conseguia sentir? Tinha vontade de arrancar a pele onde aquele homem a tocava. Ele a encoxou. Lucy jogou o cotovelo para trás, por instinto. E pôde notar que doeu, mas só o suficiente para fazê-lo segurar os dois braços dela com firmeza.

— Traz ela pra cá, Chris! — ela foi arrastada pro lado. Tentou impedir com o peso do corpo, mas estava longe de ser pesada. Por um momento, conseguiu morder a mão que cobria sua boca. — ME SOLTA CARALHO — e, num movimento com toda a força, conseguiu se soltar. Imediatamente, ela sentiu uma rasteira nas duas pernas. Lucy mal havia tocado o chão quando levou um chute no estômago.
— Para… — outro chute, esse em cheio. — quieta… — um último, no rosto desprotegido — VAGABUNDA!!

O sangue que já estava na boca saltou para fora. O impacto chacoalhou até mesmo seu sentidos. Ela não conseguia reagir nem a dor, estava tonta. A luz ficava turva e opaca.
— Tá Has, bate depois… olha ali, a boquinha cheia de sangue…
Já nem era mais nojo, era muito maior que isso… Seus sentidos voltavam junto com com as dores. Lucy sentiu seu corpo sendo erguido e jogado contra um tonel de lixo. Mãos percorriam seu corpo sem que conseguisse se defender. Ela jogava seus braços e pernas contra os toques, mas pouca força ainda restava em seu corpo. As lágrimas lhe turvavam a visão, e suas roupas eram puxadas até ela sentir-se bolinada diretamente na pele. Grunhiu. Explodiu todos os músculos do corpo como reflexo e se soltou. Apenas para ser agarrada em seguida.

— Para quieta, caralho! — ouviu, ao levar um gancho no estômago. Estremeceu. Lucy foi tomada pelo desespero em seu espírito, já que seu corpo não era capaz sequer de expressa-lo. Os botões de sua camisa estavam estourados e a calça baixava dos joelhos. Ela ouvia a respiração ofegante dos outros dois se masturbando à sua volta, enquanto seu agressor empurrava suas pernas em direção opostas. Lucy fechou os olhos. A impotência, a angustia, o ódio, o medo, o desespero, a raiva… Ela sentiu o homem na sua frente tentando penetra-la, mas ela já estava… ardendo.
— Argh!! — retrucou o primeiro, sem entender.
— Caralho, meu pau…!! — Os dois se afastaram dela. Lucy se recolheu e, ao abrir os olhos, sua expressão estava diferente. Uma mistura de raiva… e de determinação.
— Que porra é…?!! — Lucy olhou para o terceiro, já um pouco mais distante. Por um momento seus olhos se cruzaram, e sem conseguir desviar o olhar, o rapaz começou a tossir e engasgar. Ela ainda o encarava enquanto ele caía sobre os joelhos, com as duas mãos na garganta. Tossiu mais algumas vezes até vomitar, mas nenhum fluido saiu de sua boca. Apenas brasas.

O senhor Thompson caminhava pesadamente pelas ruas do Bairro da Madeira. Estava tenso, mas não pelo frio que trespassava suas roupas, nem pela luz fraca dos raros postes de luz (no que, aliás, era seu tradicional caminho de casa). Havia algo de diferente naquela noite, uma sensação ruim lhe percorria a espinha. Ele estava cansado, já não tinha mais idade para tantas horas extras quanto vinha fazendo. Mas, na verdade, essa era sua única opção. Era a forma que encontrara de pagar os estudos da filha Laurie. Não que o emprego na portaria do bom hotel Adama, na Cidade Alta, não pudesse lhe render condição melhor, mas ser veterinária era o sonho dela e, bem dizer, foi por isso que procurou um emprego melhor. O ônibus o largava há pouco menos de um quilômetro de casa — uma vantagem de pega-lo direto da estação de trem.

Já eram quase dez da noite quando o velho homem passava por um beco perto de casa. Um rapaz que estava parado logo no começo do beco o encarou. Ele não era particularmente intimidador, mas sua expressão deixava claro seu compromisso em fazer alguma besteira. Thompson conhecia bem aquela expressão, muitos a tinham no Madeira, e por muitos motivos.
— …Vagabunda!
— Aaahh!! — Ele ouviu um grito abafado de dor, e sua atenção se desviou por cima do ombro do rapaz. Mais ao fundo no beco, ele pôde ver alguns vultos, mas tudo ali era muito escuro. Ele desviou o olhar e, quando o jovem percebeu, ameaçou partir para cima dele.

— Qual foi, tio?! Vaza!! — Thompson, que havia reduzido um pouco a passada, voltou seu peito para frente por reflexo. No Madeira, nunca se sabe. Ele continuou andando, mas por muitos metros aquele grito ecoou em seus ouvidos, como se viesse de dentro deles. Caminhou mais alguns metros e, virando a última esquina, pensou nas piores coisas que poderiam estar acontecendo. Enquanto pegava as chaves de casa, ele pensou em sua filha… e que aquela moça era filha de alguém. E, longe às suas costas, de repente:
— AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHH!!!!!!

Thompson virou-se subitamente para o som. Com certeza vinha daquele beco, mas a voz… era masculina?
— Aah… Aaaahhhh… AAAAAAAHHHHHH — Outro urro, também masculino. Enquanto o primeiro parecia apenas de dor, esse vinha acompanhado de desespero. O velho praguejou para si mesmo, revirou algumas coisas em casa e encontrou um pequeno martelo. Saiu porta afora empunhando a ferramenta.

Mas o que iria fazer?

Poucas ideias lhe vinham à cabeça, era quase como se o instinto o movesse. Ele virou novamente a mesma esquina, e logo viu que o beco brilhava de dentro para fora. Thompson se aproximou, segurando o martelo na altura do ombro. Espiou para dentro do beco e, logo na sua frente, viu um estreito rastro de brasas ardentes. Um pouco adiante havia algumas roupas chamuscadas, iluminadas por dois pequenos focos de chamas. Um no chão, maior, na esquerda; e o outro do lado oposto, menor, queimava sobre a tampa fechada do tonel de lixo. Ele se aproximava cuidadosamente, contornando o rastro de brasas pelo lado do lixo. Havia alguma fascinação naquela chama. Ele a encarava fixamente e, quando chegou perto o suficiente, percebeu que ela não queimava nada, sequer a tampa estava carbonizada.

E notou, finalmente, que aquela chama não emitia calor algum. Sua obsessão só foi quebrada por um baixo som. Um choramingar, do lado oposto do tonel. Thompson engoliu em seco, segurou firme o martelo e deu mais alguns poucos passos.

Uma menina jovem, de cabelos castanhos, apertava as pernas contra o próprio corpo. Ela estava sentada, escorada entre a parede e o lixo, escondendo o rosto entre os joelhos. Suas roupas estavam repuxadas, o cabelo bagunçado, mas não conseguia ver nem se tinha se machucado. Tentou saber como ela estava. Mas, na verdade, ele nunca entenderia.

Lucy ergueu a cabeça e encarou o senhor que a chamava, e logo sua expressão ficou tão triste quanto a dela. Seus olhos perdiam o brilho lentamente, conforme o vermelho os tomava. Um pequeno martelo desabou de sua mão e, sem deixar de olhar nos olhos dela, caiu de joelhos, chorando. Perdeu mais alguns segundos a encarando, antes de seu corpo estirar-se no chão. Seu rosto estava profundamente triste e encharcado com as próprias lágrimas.

Mas a expressão de Lucy, por outro lado, agora estava calma.
Ela permanecia imóvel, olhando para onde o senhor estava antes de cair.
O fogo que iluminava seus olhos refletiam no brilho escarlate de suas íris.

Repentinamente, ofegou. Seus músculos cederam tanto que precisou apoiar os braços no chão. Fechou os olhos com força e respirou fundo. Quando os abriu novamente, as chamas haviam sumido. Estava escuro outra vez. Esfregou os olhos com as mangas, limpando o sangue das bochechas. Lucy se sentia aliviada, mas sabia o porquê. E ela odiava aquilo.

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