With Eyes of Red

Matheus Camargo
Alusória
Published in
5 min readSep 11, 2020

uma cena de despertar

Nick corria pelo refeitório escuro, esbarrando em cadeiras viradas e mesas jogadas pelo salão, deslocadas pela explosão. Ele correu até a porta dupla, adentrou na cozinha e, ouvindo passos às suas costas, se apressou para chegar na próxima porta, usando as bancadas para puxar o próprio corpo. Estava cansado. Cansado, e sozinho.

A parca luz branca da lua desenhava as molduras das janelas estreitas pelas quais entrava, e seu feixe reluzia nos azulejos trincados da parede oposta. Era tudo que lhe permitia enxergar. Nick forçou a porta no fundo da cozinha. Trancada. Ou emperrada? Não importava, não tinha tempo para tentar abrí-la.

A porta dupla da cozinha foi aberta em um coice. Nick estava agachado atrás de um dos balcões, concentrando-se para não fazer nenhum som, e tentar escutar. Um dos homens de Merklen havia entrado, mas estava parado ainda na porta. Na tentativa de focar-se no som, fechou os olhos.

O homem deu um passo.

Apenas um passo, longo e pesado, que não deveria corresponder à sua altura. Mas, mesmo sem sair do lugar, parecia ainda se mover. Era quase como se pudesse vê-lo. Nick respirava devagar. Tão devagar que quase lhe faltava o ar. Percebeu que o homem agitou uma das mãos, e a porta dupla novamente se abriu.

Outro homem entrou na cozinha, mas esse parecia se mexer mais levemente, e ambos passaram a andar na direção da porta que Nick tentou abrir. Andavam devagar, separados por algumas bancadas, enquanto o rapaz contornava lentamente o balcão que o encobria. Um deles parou no meio da cozinha, enquanto o outro já atingia a porta. Com um ranger de madeira, seguido de um estalo de peças de metal, o homem abriu a porta emperrada.

O barulho levou apenas um instante para se dissipar, e, assustado, Nick puxou seu corpo para mais perto do balcão, mas seu movimento foi brusco demais. Ele pôde ouvir os dois homens se agitando, e sentia que havia sido descoberto. Seu medo rapidamente se transformou em desespero. Abriu os olhos, tão logo ouviu o primeiro passo em sua direção, do homem que estava mais próximo. Olhava para baixo, tentando controlar a si mesmo e seu nervosismo. De nada adiantava, sua respiração estava pesada e seu coração tentava fugir-lhe do peito. Os homens continuavam a se aproximar, e Nick permanecia imóvel, agitando apenas seus olhos, procurando ao redor uma solução.

Estava tudo sem cor, pálido, entretanto conseguia enxergar com certa clareza a sua volta. Panelas, louças, talheres, potes… mas nada que lhe service. Ele percebeu que o primeiro homem a alcançá-lo viria pela esquerda. Seu instinto dizia-lhe para avançar, gritar, fugir, e os espasmos de seus músculos tentavam empurrá-lo. Porém, sua consciência e seu pavor lhe amarravam. E, quando pôde finalmente ver o homem que o caçava, uma lágrima percorreu seu rosto. Uma lágrima espessa.

— Elia, Elia?! Ele ta aí?! — Indagava Mike, sem descuidar da sub-metralhadora que carregava consigo. Elia apontava a pistola para detrás do balcão de onde viera o som estranho. Mike estava a cerca de três metros de Elia, e só conseguia ver sua silhueta. Estava escuro demais, e Mike ainda se sentia um pouco atordoado. E insistiu:
— Caralho Elia, que porra é essa?! — Nada. Elia não respondia, nem fazia menção de ter ouvido. Ele continuava parado, apontando a pistola para trás do balcão. Mike mirava sua arma para a parte oposta do balcão, dividindo a atenção com seu companheiro. Ele estava nervoso e, chamando o nome de Elia, deu um passo para frente.

Por um instante, um clarão iluminou o ambiente.

A luz tocou o rosto de Elia, e sua expressão era de pavor. Ele chorava, mas seus olhos não possuíam pupila nem íris. Estavam tomados de vermelho. Porém, Mike não viu nada disso. O estampido ainda ecoava na cozinha enquanto seu corpo desabava, amolecido, com o buraco na testa. Elia recolheu o braço da pistola, encostou a ponta do cano atrás de seu queixo e, sem hesitar, disparou.

Nick continuava paralisado detrás do balcão, mas não mais pelo medo.
Por um longo momento, permaneceu com o pescoço esticado para cima, apoiando-se em suas mãos, sobre o chão. Quase como um estalo, sua respiração ficou ofegante repentinamente, e seu músculos se afrouxaram. Ele deixou seu corpo cair para trás, soltando seus ombros e relaxando, ainda que apenas um pouco, a tensão em seu semblante. Não lembrava muito do que acabara de acontecer, do que tinha feito e se é que o fez, mas se sentia aliviado. Respirou fundo, olhando ao redor. Estava tudo muito escuro, e era difícil de enxergar. Porém, Nick precisava seguir em frente.

Mesmo ainda um pouco trêmulo, tateou o corpo estirado à sua frente.
Ele guardou a pistola que encontrou e voltou-se para a porta aberta pelo outro homem. Avançou pelo pequeno depósito, passando por cima de alguns pacotes e prateleiras, até chegar à saída. Felizmente, estava aberta. Ela dava em uma das laterais da fábrica, com a parede ainda intacta. Esgueirando-se pelos prédios, Nick rumou à estrada, iluminada pelo fogo da explosão. E, ainda sem enxergar muito bem, foi surpreendido.

— Nick?! Caralho, é o Nick!!

A voz familiar lhe tirou uma tonelada das costas. Eram Gray e Lucy, e pareciam a salvo. Eles se abraçaram, e por um momento se esqueceram das adversidades que travaram naquele dia. Porém, Lucy encarou Nick, e o alívio fugiu-lhe do rosto.
— Vo… você tá bem? — ela soava preocupada, mas Nick fez menção com a cabeça, sem entender — O seu rosto…
Ele passou a mão no rosto, e sentiu que limpou algo. Era sangue.
— Não… Eu tô bem. — Disse, num leve gaguejar, enquanto esfregava os olhos. — Deve ter respingado…
— Respingado? — questionou Lucy.
— É, eu não…
— Tu não, tu depois. — interrompeu Gray. — Agora, a gente precisa é vazar daqui. Vem, eu conheço um caminho pelo bairro. — Dizia, enquanto puxava ambos pelo braço.

Os três corriam pelo pátio da fábrica, sem fazer ideia se Merkleen ou seu grupo ainda estavam vivos. Nick desacelerou o passo e encarou as chamas, já distantes na entrada de uma das edificações. Era quase como se pudesse sentir o ardor em seus olhos. Ao longe, ele ouviu sirenes se aproximando, e tornou a correr.

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