Absorvente, bem mais que copo d’água, não se nega a ninguém

Gabriela Luna
amazonahightech
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2 min readDec 9, 2020
Absorvente e cálice, recorte da imagem produzida por Vera Holtz, disponível em https://twitter.com/veraholtzirreal/status/905554177199394818/photo/1

a febre anuncia resistência. corre mais um ciclo e o punho sangra no final. doses cavalares de estrogênio indo ao mar, terra, escorrendo pela perna ou encontrando o algodão. um corpo preparado para criar outro corpo, quase meu, quase eu, quase quem eu nem seria. um ovo quebrado. os últimos vinte e oito dias vão virando o vir. o ir. o rio, maremoto, maresia.

grita. espirro. expulso o sentido da vida. tsunami carmim. me encontro à beira de mim. no meio do sofá na sala da minha tia. o sinal de estar viva. neta, menarca. vó, menopausa. cuidado para não manchar a toalha. o sangue fruto da vagina, fruta mordida. ninguém me ensinou de quanto em quanto tempo trocar. respeitar. os ciclos da vida. peço emprestado esse crime de estado, o absorvente.

camomila, erva cidreira, artemísia, canela, capim limão, escalda pés de alfazema. ler o próprio corpo. se perceber. fértil. querer. foder. gozar. receber. ser. indignar. transtornar. ensombrecer. sentir o corpo retendo líquido. tudo o que eu bebo, toda a água do mundo, meu corpo contém, meu corpo retém. viro um balão, balão de líquidos. explodindo. noutra onda desse rio, meto dois dedos e sinto o líquido quente tingir-me a mão. espalmo sobre uma folha do caderno, o sangue forma um desenho. coelho. flor. mulher. mula sem cabeça.

Um poema escrito por quem sangra e nem sempre tem como estancar, pela “maioria silenciosa”, pelo Brasil que habita as entranhas de Gabriela Luna.

Publicado originalmente no lançamento do Volume 43 da Revista do Centro Brasileiro dos Estudos em Saúde: “Outros olhares sobre a reforma sanitária brasileira”, em Dezembro de 2019. Organizado na zine “Diálogos com a Saúde Pública”, editada pelo Coletivo Nós, as poetas!, no mesmo mês e ano.

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