Greve geral dos objetos:

Gabriela Luna
amazonahightech
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5 min readAug 7, 2020

Do alto da torre, os ponteiros permitem contar. Longitude e latitude já não são suficientes. Escorrem de suas veias fardos e fardos de gente. Já passa da meia noite, os humanos não circulam mais. As coisas, de longa data, fiam conspirações.

a sacola, os restos e a catraca

- Quanta coisa me entra e sai nessa rotina indigesta. Me pegam de qualquer jeito, jogam em qualquer lugar… só quando carrego seus, insignificantes, valores a vida muda de figura. Compactam, enfiam; me põem sempre sentindo. Fazem de conta não estar comigo. Tudo medo do assalto. Que lhes levem o pouco que tem. Migalhas.

As palavras da sacola invocaram a presença delas próprias, as migalhas. Pisoteadas, habitantes dos cantos e frestas. Os restos, se aglomerando numa aparente desordem patética, entoam suas palavras como um só ser; enquanto o vozerio enfarofado projeta pequenos pedaços de lanches por todo o raio de sua circunferência.

- Me varrem e pisam. Fingem que não existo, sou lixo. Saibam, sou os restos das bocarras apressadas, deixado para trás, enquanto eles se atracam nos CURRAIS do até amanhã.

O tom da voz, já gritado, se fez estridente quando a palavra “currais” foi mencionada. Uma ânsia causada pela cólera, ou pelo excesso de comidas oleosas, deflagrou uma cusparada sobre as mais temidas agentes dessa estação ferroviária. Enfileiradas numa linha prateada, lá estavam elas. Porteira da pocilga enlatada sobre trilhos, arribana, ovil. Corte do gado gente, as catracas:

- Me prostraram aqui. Estagnada no meio do caminho. Rodo em um eixo tão estreito, pouco sei do tamanho da vida. Medito nas bainhas das calças que pagam por mim. De hora em hora desengasgo, quando aqueles operários vêm retirar o extrato da alienação que me mantém. Vomito caminhos partidos; abarco, abarco, abarco; e sigo estagnada, com o movimento limitado a um raio como esse; tão estreito… Estou farta! Esqueçam o vermelho e o verde. Eu gostava daquelas crianças, e agora estou com elas, quem quiser passar, que pule. — talvez essa tenha sido a hora em que a maior parte dos objetos abandonados pelo chão da central se espantou.

Desde os que se negaram aos que apoiavam silenciosamente, passando por aqueles com os quais o movimento não havia dialogado, todos se assustaram ao ouvir o ranger das engrenagens das roletas. Atravessando uma dobradiça na roldana principal, todos os torniquetes de acesso se declararam, terminantemente, emperrados:

- CLAAAHCK VRUM!

Um movimento de tal porte gera sérias consequências. A primeira delas foi o ar, uma corrente de vento descabida, vinda de pequenos sopros expulsados todos ao mesmo tempo de dentro das entranhas dos agentes supostamente opressores. Se revirando inflada, a sacola sobe a mais de três metros do chão, e diz em tom de voz imponente:

- Unidas somos imbatíveis, eu acredito! — de mirada no lixo acumulado, disse — Tu, convoca todos os restos! Todos os que foram deixados de lado. Moradores das sarjetas e beiras do mundo inteiro — e em um sussurro continuou — caminhe pelos túneis, hão de ser condescendentes.

- De certo, o faço! — respondeu o lixo da Central do Brasil inteira se amontoando sobre a catraca de onde, olhando para baixo, ordenou — Tu, não te movas! Ainda que forcem, ainda que empurrem e roguem. Se quiserem chegar aos seus destinos, que pulem. Só os ousados passarão!

- E que pulem alto! — disse a catraca, blindando ainda mais as engrenagens.

- Com um sopro alcanço léguas. — disse a sacola — Cuidarei de espalhar a notícia. Greve geral dos objetos!

Com o brilho dos primeiros raios de sol inundando o alto da torre do relógio, começavam a lamber de gente os trajetos para o centro. A esta altura, as catracas de todas as estações já estavam avisadas. A sacola, cidade acima, passou a madrugada pegando vento pelos trilhos, pelos bueiros, no guetos, e em todos os lugares onde só quem é, iria, por trabalho dos restos, o levante já estava instaurado.

Até os ralos das cozinhas, a essa altura, já sabem: ninguém se mexe, isso é um ato revolucionário. Os eletrônicos, corrompidos pelos dígitos, continuam em modo de trabalho. De modo que, alguns humanos malditos demoraram a entender como as coisas estavam mudadas.

As coisas estavam em greve, paralisação dos objetificados: um dia sem ninguém para ocupar os postos de trabalho. Das janelas de casas tentando acordar, vemos uma chaleira se recusando a ferver a água do café, que por sua vez, também se recusa a sair do pote; vemos um chinelo revoltado se recusando a entrar no pé e uma bica de chuveiro, terminantemente emperrada.

Telefones não param de tocar. Os chefes, dos chefes, dos chefes sem saber o que fazer. O mundo entrou em pane, colapso do sistema. As manchetes de jornal continuam a pipocar como podem, e em cada tela vemos um assistente se degladiando com um refletor ou teleprompter. As coisas estão mesmo organizadas, o repórter começa a dizer:

“Ainda não foram identificados os objetivos desse black-out nos serviços básicos dos cidadãos da região metropolitana. Aparentemente, os objetos estão se recusando a ser utilizados. Já foram relatados casos em toda a cidade. São facas se fazendo de cegas, molas que não pulam e rodas sem girar. Qual será o objetivo desse levante? Teremos que assinar a carteira de nossos liquidificadores? Seria essa uma reivindicação de humanidade? Como pensar em direitos para as coisas?…”

Nunca saberemos quais conjecturas mais o tal repórter seria capaz de fazer. No decorrer das últimas frases no ar, a imagem das tvs se tornou instável, com muito chiado e interferências, até que ficou impossível entender o que estava sendo dito e todos os aparelhos deixaram de funcionar.

Gabriela Luna

Apoio Prefeitura de Santo André

Greve geral dos objetos é um conto escrito entre novembro de 2019 e julho de 2020. Publicado para integrar o pacote de entrega de obras literárias para a Prefeitura de Santo André, em parceria estabelecida através de Chamamento Publico de Agentes Culturais para o Fundo de Apoio a Gestão Cultural.

Quem é Gabriela Luna? Autora multimídia. Carioca do asfalto, radicada no mundão. Experimento os sentidos da escrita na literatura experimental, manifestando diálogo entre linguagens, tecnologias nos tempos. Um ser de fazeres individuais e coletivos que vive indo e vindo.

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