O Conhecimento é Feminino

Jhonatas Elyel
Pensamento Originário
4 min readAug 8, 2020

Certa vez, não me lembro exatamente onde — documentário, livro, Youtube, rede social? — ouvi falarem que em termos evolutivos o gênero masculino tinha maiores facilidades para a exploração — devido às centenas de milhares de anos em que nossa espécie viveu em sociedades tribais de caçadores e coletores — enquanto as mulheres eram mais inclinadas à contemplação — uma vez que naquelas sociedades suas tarefas giravam em torno do cuidado com os alimentos, crianças e na manutenção da própria tribo. Pensando agora, inúmeras ressalvas deveriam ser feitas à essa suposição, caso ela seja levada a sério pela comunidade científica, mas ainda assim, de uma outra perspectiva tal informação esconde um fato interessante.

Pois, enquanto reis guerreiros expandiam as primeiras civilizações da História, algumas figuras femininas destacavam-se na manutenção cultural e simbólica das grandes civilizações de nós perdidas nas areias do tempo. Especificamente falo da primeira figura registrada na história — de ambos os gêneros — como autor. Ou melhor; autora!

Enheduana retratada na série Cosmos (National Greographic Society)

Enheduana é seu nome, e foi uma princesa da antiga Acádia; civilização que floresceu entre os rios Tigre e Eufrates em torno do século XXIV a. C., sendo conhecida como um dos primeiros Impérios de que se tem registro. Grande parte dessa fama surgiu com o pai de Enheduana, o rei Sargão, responsável por conquistar e unificar as cidades que se distribuíam então em torno dos rios citados acima. É dito que Sargão teria nomeado sua filha como Alta-Sacerdotisa e enviado-a para o templo em Ur — capital de uma civilização ainda mais antiga, de fato, a mais antiga até hoje datada: Suméria — em um movimento político, objetivando com isso manter o controle daquela região de extrema importância política, então recém-conquistada. Com isso, o papel da sacerdotisa de Inanna assoma de modo ainda mais proeminente, uma vez que é creditado a seu trabalho no templo, a subsequente unificação religiosa dos povos sumérios e acádios.

De fato, seus hinos, poemas e salmos se espalhariam pelos diversos pontos da Acádia, vindo, de acordo com alguns estudiosos, a influenciar mitologias posteriores, como aquela da Bíblia, além dos épicos atribuídos a Homero na cultura helênica, como afirma o historiador Paul Kriwaczek no livro Babilônia: a Mesopotâmia e o nascimento da civilização, creditando Enheduana à criação

“de paradigmas da poesia, salmos e orações através de todo o mundo antigo… Suas composições, apesar de terem sido redescobertas apenas nos tempos modernos, continuaram sendo modelos. Através dos babilônicos, eles influenciaram a inspiraram orações e salmos da Bíblia hebraica e os hinos homéricos da Grécia. Através deles, ecos de Enheduana, a primeira autora literária da história, podem ser ouvidos mesmo na hinologia da igreja cristã primitiva”.

Assim, é sabido que Enheduana gozou de grande influência e poder político, mesmo durante o reinado de seu irmão, Rimush. Àquela altura a alta sacerdotisa parece ter sido incluída em turbulências políticas que levaram a seu banimento do templo em um primeiro momento. Com relação ao exilio são lhe atribuídas as seguintes linhas:

Estava ao seu serviço

Quando entrei pela primeira vez no templo sagrado.

Eu, Enheduana,

A princesa mais alta.

Ele carregou a cesta ritual.

Eu cantei seu louvor.

Agora eu fui jogada

Para o lugar dos leprosos.

O dia chega

E a minha luminosidade está escondida em meu redor.

Sombras cobrem a luz,

Revestindo-a em tempestades de areia.

Minha linda boca só conhece confusão.

Até mesmo meu sexo é cinza.

Eventualmente, sua posição no templo em Ur foi restaurada e Enheduana representou os deuses por aproximadamente 40 anos, no que foi sucedida por suas filhas, mas não sem antes ser elevada a uma categoria semi-divina — feito relativamente comum no mundo antigo. Prova da perenidade de sua figura pode ser afirmada por estátuas em sua honra, esculpidas séculos após sua morte. E, apesar de ser do fato de que Enheduana foi uma figura abastada e dotada de muitos privilégios sociais, historiadores e arqueólogos debatem ainda hoje a alfabetização de mulheres na antiga Mesopotâmia, sociedade cuja mitologia chega a nos indicar uma divindade feminina responsável pela escrita: Nidaba.

Disco representando Enheduana como figura central (Universidade de Arqueologia e Antropologia da Pensilvânia, Estados Unidos).

Fontes bibliográficas:

KRIWACZEK, Paul. Babilônia: a Mesopotâmia e o nascimento da Civilização
FOLHA LETRAS: A Escritora mais antiga do Mundo. Disponível em: http://www.folha1.com.br/_conteudo/2019/04/cultura_e_lazer/1247309-a-mais-antiga-escritora-do-mundo.html

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Jhonatas Elyel
Pensamento Originário

PT: Escritor e historiador 🕰👨🏻‍💻 ENG: Writer and historian 👨🏻‍🏫⏳