Os Simpsons e os Regimes Históricos

Jhonatas Elyel
Pensamento Originário
6 min readAug 8, 2020

No episódio de número 500 (décimo quarto da vigésima terceira temporada), Os Simpsons são confrontados com o banimento de Springfield e uma nova fase em suas vidas, ao serem aceitos em um assentamento de outros “proscritos da sociedade”, chamado no desenho de “Colônia”. Contudo, Homer e Marge retornam em segredo, sendo logo descobertos e oprimidos pelos habitantes furiosos, que logo recebem uma lição de Marge, que sentia falta daquele lugar antes de perceber quão mesquinhas eram aquelas pessoas. Sendo honesta ela mostra aos antigos vizinhos e conhecidos quem eles realmente eram, e percebe que estava muito melhor em um lugar sem encanamento interno, mas onde as pessoas aceitam os outros como eles são. Com essas palavras, ela mesma dá as costas aos habitantes de Springfield e não demora a ser seguida por estes, que agora desejam unir-se aos Simpsons em “um lugar melhor”.

E apesar das inúmeras lições que poderíamos tirar desse episódio (que, por si só, já é um marco), gostaria de atentar para algo que ainda não foi revelado: quando nota a presença dos antigos amigos — e mais, uma vez que mesmo as instituições de Springfield, como o governo corrupto e a educação ineficiente — em seu novo lar, Marge declara que eles haviam deixado tudo aquilo para trás. Então neste momento ela é interrompida por um dos personagens mais secundários da série (Sideshow Mel) com a seguinte frase: vocês não podem escapar da civilização, Marge. A humanidade é uma marcha inexorável rumo ao alto! Ou era — ele pontua, mudando o tom imperativo para outro, de clara frustração — até o ano 2000. Mas o que isso quer dizer? Não é à toa que Sideshow Mel (cujo verdadeiro nome é Melvin van Horne) diz isso agora, na segunda década do terceiro milênio, em meio à tantas realidades distópicas na cultura popular e uma sensação existencial atordoante em um cenário de crise.

É curioso notar agora — com a possibilidade de um olhar ligeiramente mais afastado e, portanto, mais “imparcial” — como a história dos últimos cem anos tem parecido nada além de uma contínua sucessão de crises, rupturas não só institucionais, mas estruturais e, mesmo, temporais. Essas rupturas são o que o historiador François Hartog denomina de brechas em sua obra “Regimes de Historicidade — Presentismo e Experiências do Tempo”.

De fato, a primeira grande ruptura sequer aconteceu depois do ano 2000, ou mesmo do século XX. Hartog fala da Revolução Francesa como o “trauma” necessário para que a civilização ocidental rompesse com a antiga ordem do tempo, de origens cristãs e escatológicas, onde vivíamos todos “no fim dos tempos”, apenas a espera iminente da segunda vinda de Cristo. Essa ordem seria subvertida por aquela da Revolução — como aponta brilhantemente Walter Benjamin ao dizer que:

A consciência de fazer explodir o continuo da história é própria das classes revolucionárias no instante de sua ação. A Grande Revolução introduziu um novo calendário. O dia co o qual começa o novo calendário funciona coo um condensador de tempo histórico. E, no fundo, é o mesmo dia que retorna sempre na figura dos dias de festa, que são dias da rememoração. Os calendários, portanto, não contam o tempo como relógios. Eles são monumentos de uma consciência da história da qual, há cem anos, parece não haver na Europa os mínimos vestígios. Ainda na Revolução de Julho ocorreu um incidente em que essa consciência se fez valer. Chegado o anoitecer do primeiro dia de luta, ocorreu que em vários pontos de Paris, ao mesmo tempo e sem prévio acerto, dispararam-se tiros contra os relógios das torres. Uma testemunha ocular, que, talvez, devesse à rima a sua intuição divinatória, escreveu então: Qui le croirait! On dit qu’irrités contre l’heure. De nouveaux Josués, au pied de chaque tour. Tiraient sur les cadrans arréter le jour.

Em seu lugar a Revolução deu o primeiro passo em direção à ordem moderna do tempo. Aquela mesma capaz de utilizar-se do conhecimento cientifico para instaurar uma concepção linear do tempo, largamente influenciada por aquelas filosofias da História de cunho progressista (como a de Hegel) e positivista (como a de Comte). Inaugurava-se, portanto, o porvir, abolindo-se a superstição e a crendice em nome de uma (tomando emprestadas as palavras de Sideshow Mel) “marcha inexorável rumo ao alto”, quer fosse esse alto a ditadura do proletário, a abolição do Estado, ou o crescimento econômico eterno concebido pelo capitalismo liberal.

Assim transcorreu, na verdade, o século XIX; não o XX. Nesse sentido podemos notar que a nova grande ruptura da ordem moderna do Tempo, explicitada pela assertiva do ajudante de palco de um palhaço de origens judaicas (o que faz toda a situação quase tragicômica) e vivenciada, de acordo com Hartog pelos europeus a partir da Primeira Guerra Mundial, leva quase um século para se fazer sentir fora da Europa, cristalizando-se no resto do mundo apenas com a “derrocada do ideal comunista trazido pelo futuro da Revolução” (nas palavras do próprio Hartog) em 1989 (exatamente duzentos anos após a Grande Revolução de Benjamin). Assim escreve o historiador francês:

O próprio curso da história recente, marcado pela queda do muro de Berlim em 1989 e pela derrocada do ideal comunista trazido pelo futuro da Revolução, assim como a escalada de múltiplos fundamentalismos, abalaram, de uma maneira brutal e duradoura, nossas relações com o tempo. A ordem do tempo foi posta em questão, tanto no Oriente quanto no Ocidente. Como mistos de arcaísmo e de modernidade, os fenômenos fundamentalistas são influenciados, em parte, por uma crise do futuro, enquanto as tradições, às quais se voltam para responder às infelicidades do presente, são, na impossibilidade de traçarem uma perspectiva do porvir, amplamente “inventadas”. Como articular, nessas condições, o passado, o presente e o futuro? A história, escrevia François Furet em 1995, voltou a ser “esse túnel no qual o homem entra na escuridão, sem saber aonde suas ações o conduzirão, incerto de seu destino, desprovido da segurança ilusória de uma ciência do que ele faz. Privado de Deus, o individuo democrático vê tremer em suas bases, no fim do século XX, a divindade História.

Nesse interim, o tom frustrado e frustrante de Sideshow Mel e completa e indubitavelmente compreensível. Tal como os seres humanos que vivenciaram a ruptura imposta pela Revolução Francesa (e que são ilustrados em “Regimes de Historicidade” por Chateaubriand e seu olhar arguto para captar a brecha onde viviam os homens de seu tempo, entre a ordem escatológica do Antigo Regime e a ordem progressista do Regime Moderno) e pela longa e profundíssima crise do século XX (intitulado com clareza analítica por Eric Hobsbawm como a “Era dos Extremos” e representado na obra de Hartog como nomes diversos como Benjamin, Stefan Zweig e Lucien Febvre) Sideshow Mel vê o fenômeno fundamentalista de um anarquismo obscurantista e antissocial como o túnel no fim da luz e o início de incógnita representada pelo advento do terceiro milênio, onde todos são impelidos a “abandonar o navio e nadar com vontade”, porém sem rumo definido em uma experiência que, cada vez mais, parece ser o único indício sólido da ordem pós-moderna do tempo histórico e de tudo o que nele se encerra.

Bibliografia

HARTOG, François. Regimes de Historicidade: Presentismo e Experiências do Tempo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.

LÖWY, Michel. Walter Benjamin — aviso de incêndio: uma leitura das teses “sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005.

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Jhonatas Elyel
Pensamento Originário

PT: Escritor e historiador 🕰👨🏻‍💻 ENG: Writer and historian 👨🏻‍🏫⏳