Afinal, existe mesmo meritocracia?

Cleber Veiga
Análise Normativa
Published in
3 min readOct 28, 2019

O termo “meritocracia” entrou para aquela lista de palavras polêmicas, que despertam sentimentos diversos, que irão variar de acordo com a sua ideologia.

Se no campo progressista o termo virou quase uma palavra proibida e o “símbolo de tudo que tá errado aí”, muitos libertários acreditam que meritocracia é uma espécie de “senha” capaz de resolver todos os problemas da sociedade.

Esse artigo não pretende apontar qual lado está mais equivocado. Ao invés disso, vamos trazer um exemplo, retirado do livro Outliers, de Malcolm Gladwell.

O exemplo vem do hóquei, que é o esporte preferido dos canadenses, e assim como no Brasil, quase todo menino já se imaginou jogando futebol, no Canadá o mesmo acontece com o hóquei.

As crianças começam a praticar o esporte muito cedo, vão evoluindo e sendo filtradas, até que alguns poucos privilegiados conseguem chegar à liga profissional.

Parece um exemplo clássico de meritocracia, certo? No entanto um estudo feito na década de 80, pelo psicólogo Roger Barnsley, trouxe números curiosos: cerca de 40% dos jogadores de hóquei da liga profissional canadense eram nascidos nos meses de janeiro, fevereiro ou março, contra 30% no segundo trimestre, 20% no terceiro, e apenas 10% nos últimos três meses do ano. Ou seja, quatro vezes mais jogadores nascidos no primeiro semestre, do que no quarto.

Ok, agora vamos falar sobre astrologia? Não, na verdade é algo bem mais simples: nas ligas infantis de hóquei no Canadá, as crianças são divididas por ano de nascimento.

Imagine dois meninos nascidos em 2009, um em Janeiro, o outro em Novembro, jogando a mesma liga. Agora, em outubro de 2019, o primeiro teria 10 anos e 10 meses, o segundo, 9 anos e 11 meses, o primeiro menino levaria vantagem e se destacaria, pois possivelmente seria mais forte, mais rápido, teria melhor coordenação.

Se houvesse um olheiro observando esses meninos, o primeiro iria para uma liga mais importante, onde teria acesso a melhores recursos, treinadores especializados, jogaria com mais frequência, e em cerca de três ou quatro anos, a diferença entre os dois meninos seria realmente enorme.

Todos diriam que o primeiro nasceu para ser um jogador de hóquei, o segundo poderia virar atleta de fim-de-semana.

Esse exemplo mostra como uma regra arbitrária, no caso, as datas-limite impostas pelas ligas infantis de hóquei do Canadá, pode causar um impacto enorme na sociedade, nesse exemplo poderíamos dizer que grande parte dos talentos do país tenha sido desperdiçada.

Agora tente imaginar dois meninos. brasileiros, talvez também nascidos em 2009, o primeiro. de classe média alta, o segundo, numa família de baixa renda. Os dois sonham em ser engenheiros.

As diferenças entre os dois vêm desde a educação e a visão de mundo dos pais, passa por diferenças na alimentação, na saúde até chegar no abismo que separa escolas públicas e particulares, o primeiro terá um caminho muito mais tranquilo.

E você pode argumentar que o seu avô passou fome quando era criança e agora é bem sucedido, e realmente existem casos assim, assim como existem jogadores de hóquei que nasceram em dezembro, mas os números mostram que isso é exceção, não a regra.

Então, não existe meritocracia? Se você entendeu isso, leia o texto novamente. O que acontece é que para algumas pessoas as coisas são mais difíceis, seja pela situação econômica, por alguma deficiência, pelo gênero, cor da pele ou mesmo pela data de nascimento.

Cabe à sociedade identificar e tentar diminuir um pouco essas desigualdades (melhorando a igualdade de oportunidades, e não de resultados), e não se deve fazer isso por questões ideológicas, mas por questões lógicas, afinal, uma imensa massa de talentos que poderia tornar a sociedade muito melhor, pode estar sendo desperdiçada.

Referências:

GLADWELL, M. “Fora de série — Outliers”. Tradução de Ivo Korytowski; Rio de Janeiro: Sextante, 2013.

Texto publicado originalmente na página Visão Econômica: https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=931692473875416&id=266711360373534

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Cleber Veiga
Análise Normativa

Administrador, Especialista em Inteligência Financeira, estudante de economia, músico (wannabe) e mestre de RPG nas horas vagas.