No caminhar pela areia gelada de inverno, via o fundo do céu alaranjado surgir na linha fantasma do horizonte. As memórias já não funcionavam como antes. O perder dos pés nos passos curtos e cansados, acusavam as rugas do tempo. As dores que moravam em muitas partes do corpo, pareciam descansar dessa vez. As pequenas ondas goteavam os meus pés descalços. Cada pequena gotícula solitária que esbarrava na minha pele, fazia me lembrar que mesmo nos últimos sopros eu ainda estava vivo.
Pouco a pouco as lembranças tomavam o corpo e a alma. O vento vinha trazendo as vozes, os cheiros, os toques, os olhares, o coração batendo forte, as músicas de cada momento e o paladar de cada pedaço rasgado aos dentes. Sorriso, claro que essa era a única e primeira reação que qualquer um teria. Lágrimas, felizes e tristes, com dores e alívios, com paz e tormenta, de todo tipo. Essa foi a segunda reação, claro, qualquer um as teria. Sorte a minha ter tido tanta coisa para lembrar. Sorte o funcionar da memória até aqui. A areia ficava um pouco mais fria a cada passo trôpego enebriado pelas primaveras que já contavam perto das noventa e três. Dava para cheirar a maresia e entender que era feito um cheiro doce de partir de cá para lá.
Dali pelo resto do meu navegar pelas areias, apenas senti. Senti das formas mais deliciosas e das formas mais amargas. Fui capaz de sentir cada uma dessas formas. Por fim, estava parado de frente para o começar da rua de paralelepípedos irregulares e tortuosos. Meus pés entraram em curto-circuito. Não sabiam se calçavam as chinelas e dali partiam sem nunca mais voltar, ou, se ficavam e corriam ( vocês sabem que eu não conseguiria correr, mas andaria o mais depressa que os joelhos me deixassem) livres se lançando ao mar, que naquela altura devia estar congelando.
É, eu sei, essa poderia ser uma história mais encantadora, mas meus joanetes decidiram calçar as chinelas e partirem pela rua daqueles mesmos paralelepípedos que vocês já sabem. Nessa parte, minha cabeça pareceu zerar tudo que havia nela. O branco foi terrível. Definitivamente meu cérebro não pensou em absolutamente nada. Foi como se aquele caminho anulasse todo e qualquer tipo de sensação. Diante da porta de vidro azulado, girei a maçaneta e fui logo pisando nos tapetes estilo persa que deitavam no chão da sala. Já no banheiro, deixei a água quente cair até a pele me avisar que já era hora de terminar aquilo ali. Agasalhado num roupão verde esmeralda, sentei as cadeiras na poltrona do lado da lareira. Por sorte, não era uma lareira difícil de botar fogo. Com o esquentar dos ossos, apertei o play em uma música clássica qualquer, risquei o fósforo no cigarro e nunca mais ouvi o som dos pássaros.