Saudade da salsicha.

Anderson França, Dinho
Ou Seja, Treta.
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3 min readAug 2, 2018

Eu lembro que eu, ao ir a médica logo quando fui diagnosticado com diabetes, perguntei, depois da consulta, e daquele silêncio que fica quando a médica começa a anotar a receita:

-Doutora.
-Sim.
-Eu vou poder comer salsicha? Tipo, algum dia, eu ainda vou poder comer salsicha?

Desse dia, até hoje, perdi mais de 20 kilos. Entrei num tratamento e levei a sério. Comida de verdade, acompanhamento médico, usei todo dinheiro que tinha e que (principalmente) não tinha, pra me cuidar.
Eu, naquele dia, sabendo que tinha uma doença que ia me trazer restrições alimentares graves, perguntei sobre salsicha.

A resposta dela foi:

-Olha. O seu corpo vai dizer se você vai poder comer. Não digo que você não vai poder comer, eu estaria sendo radical. Mas vai ser seu corpo quem vai poder dizer.

Com isso, ela disse "não", me explicando, com muito jeitinho, que não era o fim do mundo. Acho que ela me entendeu, porque ela parou de escrever e me olhou nos olhos.

Quando ela diz que o meu corpo ia me dizer, ela diz a verdade. Eu, me cuidando e dando valor a minha saúde, vou saber o quão caro é pra mim fuder com a minha saúde de novo.

Na verdade eu entendi algo mais.
Salsicha, essa marota, é comida coletiva. O problema é que a gente é amigo da salsicha. Salsicha não é alimento, salsicha é uma amiga. Nós temos uma relação afetiva com a salsicha. Quem é pobre, e quem nem é tão pobre assim, sabe que é em torno de alguns alimentos que a nossa vida social gira. Frango assado é para os domingos. Salsicha pede festa. Pede filme. Pede mais gente em casa. É o primeiro lanche coletivo que temos na rua, na casa de um amigo.

Comer salsicha sozinho é uma merda.
Salsicha não se come sozinho.
Tem gente, gente rindo, batata palha. Bagunça.
Em cada podrão da esquina ela está lá. Sendo a testemunha da nossa fome, nas madrugadas do subúrbio. Salve, salve, o bonde do sanduba. Que sempre fortalece na madruga.

Pois é, amados.

Aí reside a merda.

Não era bem a salsicha, era o medo de ficar sozinho.
De não poder reunir mais amigos, de não ir mais no podrão.

Mas é mais que isso.
Depois de alguns meses, cuidando do corpo, dando atenção pra coisas que não dava antes, percebi que meu corpo é a coisa mais importante. Cuidar dele pra trabalhar, pra viver. No fundo, hoje eu acho pena de sentir medo de ficar logo sem a salsicha. Com tantas coisas boas de se comer, frutas, pães, queijos, logo salsicha. Isso revela anos de pouco conhecimento sobre alimentação, mesmo tendo alguns privilégios na vida, diferente de 5 anos atrás, eu ainda me alimentava como sempre, como aprendi em casa, como comi na favela.

E aí nós precisamos falar mais sobre a cultura da alimentação nas periferias e do povo pobre. Que ama salsicha. E come. Com pão, com macarrão. Delícia, é verdade. Mas uma delícia que se tem pela falta de conhecimento de outras.

Eu nunca vou condenar uma pessoa que se alimenta mal, se ela vem da pobreza. Nada chega lá, nenhuma informação.

Hoje eu comi salsicha. Depois de um bom tempo sem isso, e sei que posso ficar um bom tempo sem comer. Comi duas. Veja você. Contei as salsichas.

Mas hoje eu entendo que eu e a salsicha já tivemos nosso affair. Sempre vou te amar, salsicha, mas hoje preciso seguir e você também.

De repente, em algum momento, faremos um flashback.
Mas eu cresci, e conheci outros prazeres. Não é pessoal. Farelo de aveia é maravilhoso. E a sensação depois de uma hora de corrida também. Vou sempre te amar. Mas agora tenho que cuidar dessa nova pessoa na minha vida, a diabetes. E se eu não mexo com ela, ela não mexe comigo.

Anderson França é Anderson França.

Enquanto isso, espero que um dia mais conhecimento chegue ao povo. Porque muitos vão morrer, não pela salsicha, mas pela falta de informação.

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Anderson França, Dinho
Ou Seja, Treta.

Empreendedor Social, Escritor, autor de "Rio em Shamas" Facebook: FB/DinhoEscritor | Founder of Universidade da Correria: FB/Unicorre | CEO Dharma ACC