A MÚSICA CAIPIRA QUE AJUDA A ENTENDER A HISTÓRIA DOS VIDEOGAMES

Andre Carvalho
7 min readAug 24, 2018

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“Você sabe onde me encontra, você tem meu endereço, mas você não passa lá” — Damitinho e Jotha Luiz, 1985

Já há algum tempo, os videogames são responsáveis por uma parcela importante do faturamento da indústria do entretenimento. Em 2017, por exemplo, bateu de frente com a indústria do cinema (US$41 bilhões x US$41 bilhões — isso descontando os jogos para tablet e celular que, sozinhos, geraram receita de US$59 bilhões) e superou por muito a da música gravada (US$ 17 bilhões).

Apesar disso, a cultura dos videogames ainda está fechada em uma grande bolha. Se, por um lado, não é fácil achar alguém que nunca tenha assistido a obras de Leonardo DiCaprio ou Fernanda Montenegro, nem ouvido canções das Spice Gils ou Ivete Sangalo, é relativamente comum se deparar com quem não conheça mais do que Mario, Pac Man ou FIFA.

E mesmo consumidores frequentes de jogos eletrônicos costumam estar familiarizados apenas com alguns segmentos da indústria. Eu, por exemplo, jogo continuamente há quase trinta anos e mesmo assim não entendo o apelo de Fortnite ou Clash of Clans, e sequer consigo acompanhar uma partida de League of Legends (esses são três dos mais populares jogos da atualidade).

A maioria das pessoas não enxerga os videogames como um meio de se contar histórias, uma forma de interação social ou mesmo de relaxar sem pensar em nada ao final do dia. Pelo contrário, ainda os veem como brinquedos feitos para distrair as crianças (essas pessoas não entenderam que a Peppa Pig e os celulares assumiram essa função) e que acabam virando hobby de adultos desajustados.

Essa anacrônica associação entre videogames e público infantil não é por acaso. Só que nem sempre foi assim.

Diversão e educação

Quando começaram a ser populares, lá no início da década de 1970, os videogames eram vendidos como uma novidade tecnológica para todos. O marketing do Odyssey, primeiro console doméstico, destacava tanto a diversão para a família quanto a ajuda na educação das crianças.

Os gráficos não passavam de pontos luminosos e era necessário afixar um plástico ilustrado à tela para dar contexto a cada jogo.

Esse comercial, o mais antigo de que se tem registro, fala em “tênis, roleta, futebol e hóquei”, mas também em “geografia” e “experiências educativas”. O console é chamado de “professor eletrônico” e de “uma completa experiência de diversão e aprendizado para todas as idades”.

Os comerciais na mídia impressa também tentavam seduzir os pais com “a emoção de Wimbledon” e “os cassinos de Monte Carlo”, enquanto frisavam que “o Odyssey também é um ajudante de ensino eletrônico. Suas crianças podem aprender números, letras, geografia e até raciocínio abstrato!”.

Se os videogames domésticos tinham essa pegada para a família, a outra vertente de jogos eletrônicos que ganhava força naquele tempo — os arcades, chamados no Brasil de máquinas de fliperama — eram ainda mais diretos no apelo ao público adulto.

A história de como essas máquinas foram testadas e depois se popularizaram em bares e estabelecimentos afins é conhecida e bem registrada. O fundador da Atari, Nolan Bushnell, queria um jogo que “qualquer bêbado consiga jogar”. Foi esse o norte que guiou a criação do primeiro grande sucesso dos fliperamas: Pong! De fato, o primeiro local a contar com uma máquina de Pong foi descrito pelo próprio Bushnell como “um boteco copo sujo” (“a peanut-shell-on-the-floor beer bar”). Como descrito por Harold Goldberg no excelente All Your Base Are Belong to Us:

“ Havia algo intensamente instintivo em jogar Pong num bar que ia além da experiência de jogá-lo em casa, no Odyssey. (…) O jogo conquistou adultos, não crianças. Ele disputava o dinheiro com a bebida, com as máquinas de jukebox e com o pinball. (…) E uma vez que você dominava o jogo, poderia se gabar na frente de todos no boteco — coisa que homens e mulheres faziam constantemente”.

Com esse posicionamento de mercado, a indústria dos videogames ia de vento em popa. O céu era o limite.

O crash e o renascimento

O céu não era o limite.

Foram tantos aventureiros achando que sabiam fazer jogos, tantos consoles incompatíveis e tanta gente frustrada com as porcarias lançadas para seus videogames que tudo começou a encalhar nas lojas e muitos investimentos no setor nunca se pagaram. A indústria quase acabou no final de 1982 e viveu uma extensa recessão até 1985, no que ficou conhecido como o crash dos videogames.

A rápida deterioração da indústria gerou a lenda de que a Atari teria enterrado milhares de cartuchos encalhados, conforme retratado no ótimo documentário Atari: Game Over.

Durante esse período, o mercado americano de jogos eletrônicos se limitou aos computadores pessoais que começavam a ganhar força. E quem veio salvar os consoles domésticos foi ninguém menos que a Nintendo, criadora do Mario, que tentava repetir no Ocidente o sucesso que o Nintendinho já tinha no Japão. Ela só não esperava se deparar com tamanha ojeriza dos lojistas americanos por esse tipo de produto.

O livro Game Over, de David Sheff, tem um capítulo dedicado aos esforços da Nintendo para romper essa barreira que começa com a seguinte fala do comprador de uma rede de lojas daquele país:

“Eu só tenho esse excelente emprego porque meu antecessor foi demitido depois de perder muito dinheiro com videogames. Você acha que vou cometer o mesmo erro?”

Por isso, precisou reposicionar o produto no mercado e passou a vendê-lo como um brinquedo, direcionando-o para o público infantil e, primariamente, masculino.

Isso incluiu não apenas a mudança no marketing, que passou a se focar na pistola de plástico e no robô de brinquedo que acompanhariam o console (redesenhado para parecer menos com um videogame tradicional), mas também uma aposta arriscada na forma de negociação com as lojas, que não pagariam nada à Nintendo por noventa dias e poderiam devolver sem custos tudo que não fosse vendido no período.

O comercial de 1985 mostra um “sistema de entretenimento” que vem com um robozinho e uma pistola que, quase por acaso, se conectam de alguma forma à TV.

E o Brasil?

É bem possível, ou mesmo provável, que os primeiros videogames tenham chegado no Brasil ainda no começo da década de 1970, trazidos pelos poucos sortudos que podiam viajar para o exterior na época, mas as barreiras à importação vigentes inviabilizavam o comércio saudável desses produtos.

Já não se falava mais em jogos educativos porque, vamos ser sinceros, ninguém jamais comprou um videogame pensando em estudar pra prova.
Comerciais diferentes focados na mãe, no filho e no pai.

Essa situação começou a mudar a partir de 1983, como demonstrado pelo pesquisador Marcus Chiado nos livros 1983 — O Ano dos Videogames no Brasil e 1984 — A Febre dos Videogames Continua (que deram origem a um ótimo documentário). A indústria dos videogames se arrastava na lama no exterior, mas finalmente levantava voo por aqui.

Como seria razoável imaginar, o marketing nacional foi intenso e seguiu o modelo visto uma década antes nos Estados Unidos, sendo direcionado para pais, mães, filhos e filhas. Se havia dado certo por lá, porque aqui seria diferente?

O reposicionamento dos videogames como um produto infantil no Brasil só viria com o lançamento dos consoles da geração seguinte, justamente o equivalente nacional do Nintendinho e o Master System da Tec Toy.

Trio Parada Dura, 1985

Enquanto a indústria dos videogames renascia nos Estados Unidos, e poucos meses depois da massiva exposição da população brasileira a essa novidade tecnológica– seja jogando os jovens clássicos no Atari 2600, seja através da campanha publicitária nas revistas e TV – um conjunto musical formado mais de dez anos antes e já bastante popular entre o público sertanejo se preparava para lançar um novo disco.

Creone, Barrerito e Mangabinha: a formação mais clássica do trio.

Ativo até os dias atuais, o Trio Parada Dura ainda contava com sua formação clássica quando gravou o álbum Perdão Senhor, que trouxe algumas faixas icônicas como o hit As Andorinhas (que voltaram e eu também voltei) e a animada Passa Lá. Enquanto a primeira falava sobre voltar para casa após uma paixão frustrada, a segunda trazia um jovem listando os diversos atrativos de sua humilde residência na esperança de convencer seu interesse amoroso a “dar uma passadinha” por lá.

Afinal, sua casa tinha cama redonda com colchão d’água e luz negra num quarto espelhado, som na cabeceira, banheira de espuma, sauna e seu drink preferido na geladeira. Num lugar tão aconchegante não podia faltar nenhum dos confortos do mundo moderno, certo? É por isso que ele também estava lá!

Fiz até hidromassagem
Com solário na passagem pro seu corpo bronzear
Videogame e cassete, meu banzé não compromete
Mas você não passa lá!

Vamos relembrar o contexto em que essa música foi lançada. Se até nos dias de hoje a música sertaneja ainda é marcada por temas mais tradicionais, imagine como isso era forte há mais de trinta anos. As letras do disco falam basicamente de dor de cotovelo e do sentimento agridoce que é estar apaixonado. A música que empresta o nome ao álbum é uma oração que termina com “Perdão, Senhor, meu erro foi amar demais”!

Mas o fato é que um dos conjuntos sertanejos mais tradicionais do país, mais “raiz”, fala casualmente sobre videogame em uma de suas músicas. O imaginário popular da época, criado no limbo do mercado americano e baseado nas ideias que o haviam erguido, transmitiu para aquela geração que os videogames estavam chegando aqui para eles. Ter um videogame em casa indicava que você estava sintonizado nas últimas novidades. Você não podia deixar isso passar em branco se quisesse convencer alguém que era um bom partido!

Comic-Con 1985?

Os videogames só foram “coisa de criança” quando o mercado precisou disso pra ganhar dinheiro. Imaginar que os personagens da música ou o público do Trio Parada Dura eram o mesmo público infantil que ainda se acredita ser o alvo principal dos videogames faz tanto sentido quanto imaginar que a próxima música da Anitta com participação do Nego do Borel vai falar sobre assistir a uma playlist da Peppa Pig no Youtube.

Passa Lá é uma música deliciosa, com um ritmo irresistível. É também registro histórico de um conceito criado pelo marketing dos videogames que, quando a indústria achou conveniente, também foi destruído por ele.

Livros Citados

1983 — O Ano dos Videogames no Brasil, de Marcus Vinicius Garrett Chiado

1984 — A Febre dos Videogames Continua, de Marcus Vinicius Garrett Chiado

All Your Base Are Belong to Us, de Harold Goldberg

Game Over, de David Sheff

The Ultimate History of Video Games, de Steven L. Kent

Agradecimentos

Eder Ribeiro e professor Daniel, pelas dicas.

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