Jogos baseados em texto

Angelo Dias
angelocria
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4 min readJul 1, 2015

O texto a seguir foi submetido à editoria Tec da Folha de S.Paulo mas acabou não sendo publicado. O reproduzo aqui (com quase um ano de atraso) na íntegra — com algumas imagens e links

Cena do jogo Depression Quest
Cena do jogo “Depression Quest

O mercado de jogos disponibiliza títulos compatíveis com o poder gráfico dos consoles, mas alguns games fogem de formatos comuns e apresentam temas delicados utilizando mais palavras que imagens. Esses jogos baseados em texto podem tratar sobre estupro, depressão e preconceito com o intuito de chamar a atenção para os temas sem se tornarem apelativos, com foco na qualidade do texto e na imaginação do leitor.

Um deles é “Depression Quest” (Jornada da Depressão), desenvolvido por Zoe Quinn, Patrick Lindsey e Isaac Schankler. A interface é composta por alguns parágrafos de história, uma imagem e algumas escolhas para o jogador. Dependendo do nível de depressão do personagem, que aumenta ou diminui durante o jogo, as escolhas mais comuns (como “levantar e sair da cama”) podem ser impedidas. O desafio é buscar ajuda e curar a doença mesmo com poucas opções de diálogo.

Ele não tem a intenção de ser leve ou divertido, segundo o site do jogo, mas passar a sensação do que é estar deprimido para que o jogador tenha um melhor entendimento sobre a doença.

Capítulo de "The Day the Laughter Stopped"
Capítulo de “The Day the Laughter Stopped

Outro jogo que segue o mesmo estilo é “The Day the Laughter Stopped” (O Dia que o Riso Acabou), do desenvolvedor Hannes “Crabman” Flor. Ele trata sobre uma garota de 14 anos que é estuprada por um colega de escola.

Crabman diz que teve medo quando lançou “The Day”, já que associar jogo e estupro poderia trazer reações negativas na internet se os jogadores entendessem errado a mensagem que ele queria passar. Segundo ele, o que aconteceu foi o contrário e a reação foi positiva. “O objetivo do jogo é trazer o assunto à tona. É melhor fazê-lo de forma clara e acessível para a maioria de pessoas. Ao invés de confrontá-los, conversar com eles sobre o que viram, o que aconteceu e porque.”

O mestrando em comunicação e semiótica pela PUC/SP Tiago Mota diz que a estranheza que ocorre ao experimentar jogos com temas como estes se dá pela expectativa que temos em relação aos videogames. “Associamos jogo com diversão, o que não é correto. Um exemplo é o Sudoku. Ele não traz alegria, relaxamento, riso. A pessoa que joga está tensa e compenetrada, mas ainda adora o jogo. Ele não precisa ser divertido, mas cativante.”

Montagem com cenas de "Coming Out Simulator 2014"
Montagem com cenas de “Coming Out Simulator 2014

trauma

Crabman diz que quer que o jogador entenda a gravidade do problema mas toma cuidado para não relembrar o trauma dos que vivenciaram o estupro. Em “The Day”, o usuário passa por três avisos até chegar no termo. “Eu não posso deixar pessoas que talvez tenha reações emocionais fortes jogarem sem avisá-las antes”, diz o desenvolvedor. Mesmo assim, a escolha de não ter imagens é maior do que a falta de dinheiro e tem a finalidade de chocar quem joga. “Nada que eu te mostrar pode vencer sua imaginação”.

O desenvolvedor independente de games Nicky Case, 19, escolheu o formato para discutir homofobia mas preferiu um tom diferente. “Coming Out Simulator 2014” (Simulador de “Sair do Armário” 2014, em tradução livre) conta a história de como ele assumiu sua homossexualidade, utilizando uma interface baseada em uma conversa por mensagens de celular e linguajar mais cômico. “Usar humor é um jeito de encarar as coisas, de deixar mais leve o que seria depressivo”, diz Case. O jogador escolhe as respostas do protagonista — o próprio Nicky — e, ao fim do jogo, descobre quais opções escolhidas pelo protagonista foram feitas na realidade. Há um diálogo com o desenvolvedor através da mecânica de mensagens de texto que afasta o jogador da experiência em primeira pessoa e o põe como um espectador da história.

Os três jogos são em inglês.

ficção interativa

O formato de jogo baseado em texto traz uma discussão que já existe entre quem estuda videogames. O professor do Departamento de Computação da PUC/SP David de Oliveira Lemos diz que o jogo precisa ter certas mecânicas, regras, desafios, feedback (como pontuação) e recompensas para ser caraterizado como jogo. “Se as opções apenas conduzem o leitor adiante e não apresentam estes elementos, ele é apenas uma ficção interativa.”

Já o professor do mestrado de indústria criativa da universidade Feevale Cristiano Pinheiro diz que caracterizar o formato depende do público. “Devido ao caráter inovador e pouco comercial, esse tipo de produto midiático de linguagem interativa fica sem classificação clara”

Para os desenvolvedores a questão é respondida com opiniões pessoais. Para Case “a discussão do que é ou não um jogo é inútil. Porque limitar o modo que exploramos a forma de arte que são os jogos?” Crabman diz que “histórias interativas e jogos são a mesma coisa. Apenas ter mecânicas já o faz ser um jogo”

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Angelo Dias
angelocria

Designer e escritor. Edito e escrevo um jornal de ficção especulativa em www.temposfantasticos.com. Conheça meu trabalho em www.angelodias.com.br