Antropologia da Arte: Uma introdução

_erinhoos
Animais Taxidermizados
10 min readDec 16, 2020
Tábua de proa de canoa, Baía Milne, Massim, Papua-Nova Guiné, Museu de Arte de Honolulu. Fonte.

O interesse pela arte como campo social e cultural está presente desde os primórdios do desenvolvimento da Antropologia. Se considerarmos o contexto de nascimento da antropologia vitoriana (a antropologia conhecida como “evolucionista”), encontraremos nos seus expoentes grande preocupação com a estilização de artefatos, indumentária e rituais. Edward Tylor, por exemplo, em sua seminal definição de “cultura”, considera a arte como parte de um “todo complexo que inclui conhecimento, crença, (…) moral, lei, costume e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos” por seres humanos na qualidade de membros da sociedade (1). Tal definição, grafada em 1871, já sinaliza e, de certo modo, antecipa as condições mediante as quais se poderia inaugurar um possível campo de análise na ciência etnográfica dedicado aos fenômenos e artefatos que viriam a ser agrupados então sob o rótulo de “arte primitiva” (conceito desenvolvido com pioneirismo por Franz Boas em seu livro homônimo de 1927).

Conquanto o nascimento da antropologia tenha raízes fundamentalmente vinculadas a empreendimentos coloniais, é nítido que boa parte dos autores que se debruçaram sobre o tema da “arte primitiva”, operacionalizou a noção de arte em um processo que implicou por décadas a “exclusão de povos da civilização, distanciando-os da cultura Europeia” (2) — fato que se evidencia especialmente quando do uso acrítico da noção de “belas artes” como parâmetro utilizado para definir o que é pertencente ao domínio artístico. Assim, o debate a respeito da formação de uma área da antropologia devotada sobremaneira ao estudo de artefatos culturais, é acompanhado, por assim dizer, de vícios epistemológicos que são intrínsecos às condições sociopolíticas de institucionalização da antropologia e da etnografia como ciências.

Deriva desse quadro histórico uma série de implicações. Cito, por exemplo, o fato de que muitas sociedades não-ocidentais sequer possuem uma tradução para o conceito correspondente à ideia de “arte” ocidental, o que também coloca em xeque um possível pressuposto de que existiria um sistema social análogo em todas as sociedades conhecidas. Há sequer consenso a respeito da existência de um critério estético para todas as sociedades, o que torna ainda mais difícil o empreendimento de uma antropologia “da arte” ou “da estética”.

Isso porque, quando se debruça sobre a arte, a antropologia muitas vezes procura ler artefatos e fenômenos de culturas não-ocidentais de acordo com suas próprias lentes. Uma estratégia possível para iniciar uma reflexão mais simétrica a respeito dos fenômenos artísticos e estéticos entre o Ocidente e os mundos não-ocidentais, partiria de uma caracterização socioantropológica da própria arte ocidental, de modo que se estabeleçam limites entre as analogias possíveis, análises e modelos de interpretação culturais. Assim, comento a seguir alguns dos aspectos atribuídos a esse sistema social a que o Ocidente chama arte. Em seguida, comento algumas das abordagens contemporâneas em antropologia da arte, dando destaque para aquelas que desconstroem o olhar ocidental sobre os processos e artefatos entendidos como artísticos. Menciono, então, exemplos etnográficos emblemáticos de alto proveito analítico que deflagram deslocamentos de sentidos atribuídos a eventos e artefatos. Concluo o ensaio sumarizando rumos para os debates ensejados ao longo do texto.

A definição de arte europeia pode ser entendida a partir de três aspectos, de acordo com Howard Morphy: institucional, atributivo e intencional. O primeiro aspecto refere-se à formação histórica de instituições (museus, escolas de belas artes, galerias de arte etc.), que se marca pela exclusão de outros territórios de reconhecimento artístico (o “artesanato”, a “arte primitiva” etc.). O segundo aspecto refere-se à identificação de índices que condicionam a relevância de uma determinada obra de arte, de modo que seja considerada efetivamente como arte. São decisivas, neste ponto, as propriedades interpretativas e estéticas de um dado objeto, mais do que propriamente sua função original.

A última forma mediante a qual um objeto se torna uma obra de arte no Ocidente europeu é, para o autor, relacionada à intencionalidade, imputada normalmente por aquele/a que realiza o trabalho de fazer obras de arte — normalmente o artista. Contudo, este último aspecto interrelaciona-se ao primeiro, já que a sagração de um objeto ao estatuto de arte depende da ratificação de um campo marcado pela institucionalização. A definição de Pierre Bourdieu de “campo artístico” vai ao encontro deste debate, ao trazer proveito analítico para análise sociológica da arte europeia. Para o autor, trata-se de entender tal campo como um “espaço estruturado de posições e tomadas de posição, onde indivíduos e instituições competem pelo monopólio sobre a autoridade artística à medida que esta se autonomiza dos poderes económicos, políticos e burocráticos (3).

Quando partimos, enfim, para uma análise transcultural da arte, isto é, para uma teoria propriamente antropológica que almeja despir-se de essencialismos eurocêntricos, encontramos três perspectivas principais: iconográfica, estética e funcional. A primeira está relacionada à análise dos objetos a partir de suas representações e/ou significados embutidos. A segunda perspectiva ancora-se nas qualidades expressivas dos fenômenos artísticos, ao passo que a terceira refere-se às finalidades atribuídas aos objetos artísticos: ritual-religiosas, associadas a prestígio, prazerosas, mercadológicas (4).

Outro traço patente a respeito dos desafios de uma análise antropológica de arte em contexto transnacional refere-se aos deslocamentos de sentido que acompanham a vida de diferentes objetos (o que pode ser sugerido a partir das análises de Arjun Appadurai), como será exemplificado adiante. Contudo, é frequentemente observando ou remontando o percurso de um objeto, ou mesmo do seu processo de feitura e/ou consagração, que é possível compreender a operacionalização de convenções artísticas.

Uma contribuição de extrema valia a esses debates é posta pelo britânico Alfred Gell ao longo de sua obra (da qual destacaria aqui o livro póstumo Arte e Agência, publicada pela primeira vez em 1998). O tratamento dispensado por Gell em suas análises é voltado para a “análise da eficácia do objeto de arte, seu poder de agência”, ou, dito de outra maneira, para as movimentações, transformações e processos por ele engendrados. Arte seria, assim, mais uma estrutura prática de “ação e de mediação de relações sociais” (5) do que propriamente um “sistema de signos e comunicação, como uma língua” (6), como queria Claude Lévi-Strauss.

De acordo com o autor, o conceito de estética seria antropologicamente contraproducente ao reproduzir as díades “obra de arte” versus “artefato”, fato que engessaria as análises. É necessário esclarecer, neste ponto, que, ao mesmo tempo que um determinado objeto entendido como “obra de arte” pode encarnar um conjunto de processos complexo, qualquer outro objeto (uma túnica, uma rede de pesca, uma ânfora) é igualmente candidato, por assim dizer, ao estatuto ontológico de “obra de arte”.

Os desafios de uma antropologia da arte são, como ressaltado até aqui, muitos, e as implicações da origem europeia da definição de arte oferecem empecílios a análises simétricas. Isso significa que o empreendimento de uma antropologia da arte ou da estética está fadado a ser engolido por suas contradições? Não propriamente, conquanto sejamos capazes, conforme sugere Howard Morphy, de analisar objetos nos termos de suas próprias culturas. Há, ademais, ainda, a possibilidade de se realizar, também, uma antropologia comparada entre sociedades europeias e não-ocidentais, conquanto há categorias de objetos estilizados que se justapõe e são passíveis de serem identificadas espaço-temporalmente.

Parto, em seguida, para a descrição de dois exemplos que são elucidativos dos pontos levantados ao longo do presente ensaio.

O primeiro refere-se ao contexto de produção da obra A Fonte de Marcel Duchamp. A obra originalmente consistia de um mictório com a assinatura de um pseudônimo (R. Mutt), e havia sido inscrita na exposição de arte moderna promovida pela Sociedade dos Artistas Independentes em 1917 em Nova Iorque. Uma hora antes da abertura da exposição, a peça acabou sendo desqualificada da mostra, já que a maioria dos conselheiros da Sociedade votaram contra sua exibição (7).

Ready-made por excelência, a obra de arte do artista francês causou frisson ao ser reivindicada como tal. Isso porque o gesto de assinar um objeto já pronto, conhecido por ter outra finalidade — de caráter coletivamente entendido como abjeto, aliás –, pleiteando dignidade artística e estética para o mesmo, desafiava de forma radical os critérios mediante os quais, até aquele momento, um objeto poderia ser considerado artístico. Assim, uma peça sanitária que até então jamais seria analisada e celebrada em função de atributos estéticos, foi, em um processo de deslocamento operado pelo gesto do artista, dotada de dignidade artística, posteriormente sendo sagrada ao panteão das obras-primas da arte ocidental (8).

A Fonte, Marcel Duchamp, 2019. Fonte.

Se decidirmos partir para uma análise transcultural não-ocidental etnológica a respeito do estatuto artístico-estético de um objeto, podemos lançar mão do exemplo da contenda entre os Kisêdje e uma fabricante de sandálias, a Grendene, analisada antropologicamente por Marcela Stockler Coelho de Souza (9). Por conta de uma campanha de marketing que tematizou a questão ambiental, a Grendene articulou o lançamento de uma coleção de sandálias que ostentaria padrões gráficos de algum povo da Amazônia. O acesso aos Kisêdjê (antigos Suyá) se deu por intermédio de uma organização não governamental, o Instituto Socioambiental.

Coelho de Souza analisa dois momentos da relação estabelecida entre a fabricante e o coletivo indígena. Primeiro, registrando e analisando o processo de seleção do grafismo a ser enviado para a Grendene, o qual foi escolhido mediante critérios relacionados a gênero (já que seria utilizado por uma mulher, a modelo Gisele Bündchen, na campanha mercadológica-midiática), ao fato de que o grafismo em questão já não era conhecido das novas gerações — tendo caído quase em desuso –, e também levando em consideração as semelhanças com os povos vizinhos, cujo patrimônio não poderia ser violado. O segundo momento consiste na quebra da cessão de direitos pela empresa no ano seguinte, e subsequentes desdobramentos.

Destacaria, sobretudo no que tange ao primeiro conflito, de saída, as seguintes implicações: (1) ainda que a sandália seja um objeto de larga reprodutibilidade, ela é ornada de grafismos ameríndios que, à revelia de seu uso e contexto originais, são dotados de valor estético para populações ocidentalizadas, (2) a cessão de direitos de uso de um grafismo implica na tensão entre diferentes arranjos socioculturais (que expressam diferentes formas de interpretar um padrão gráfico), sendo um ocidentalizado, de larga escala (o que implica em pluralidade de estilos), judicializado, situado em um regime de trocas de objetos mediado por relações de mercado, marcado pela autoria individual e pela convivência com a ideia do artista como profissional especializado, ao passo que o outro é não-ocidental, de pequena escala (o que significa que os estilos de composição corporal são generalizados e mais homogêneos), regulado sobretudo por relações de autoridade etária e parental, incipiente no regime de trocas capitalista, marcada pela composição de representações visuais coletivas e alheia à ideia de um papel social como o atribuído ao artista no Ocidente.

Todo o processo analisado por Coelho de Souza, do resgate e reelaboração de um grafismo no Alto Xingu, até a venda de sandálias ornadas pelos mesmos, desse modo, é extremamente elucidativo a respeito de várias das tensões arroladas na primeira parte deste ensaio. Se a história d’A Fonte de Duchamp demonstra a dificuldade de se estabelecer critérios unívocos para a definição de um campo artístico dentro do próprio Ocidente, quando o antropólogo se defronta com culturas de origem não-ocidental e seu substrato material, o desafio parece se multiplicar — fato que torna a ciência da pesquisa etnográfica em arte ainda mais fascinante.

Ainda que desafiador, o campo epistemológico da antropologia da arte cumpre papel fundamental na contemporaneidade, mais do que nunca, especialmente quando consideramos a entrada cada vez mais massiva de elementos culturais diversos nas instituições ocidentais (seja pela força dos movimentos sociais, do mercado ou das leis), ou, por outro lado, quando admitimos a importância das ideias de “aculturação”, “arte pós-colonial” ou “apropriação cultural” no debate público. Tais processos são radicalizados por um mundo marcado pela circulação global de populações, objetos e representações, relações de poder, desigualdades e marcas da diferença (raça-etnia, gênero, classe e sexualidade).

Gostaria de encerrar, à guisa de conclusão, este ensaio com uma citação de Alfred Gell que é absolutamente elucidativa a respeito dos desafios que acompanham o empreendimento de uma antropologia da arte simétrica e não-eurocêntrica: “Creio que o desejo de ver a arte de outras culturas de um ponto de vista estético nos diz mais sobre nossa própria ideologia e sobre a veneração quase religiosa dos objetos de arte como talismãs estéticos do que sobre outras culturas” (10).

1 — Edward Tylor. “A ciência da cultura”. In: Celso Castro (org.). Evolucionismo Cultural — Textos de Morgan, Tylor e Frazer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 31

2 — Howard Morphy. “The anthropology of art”. In: Tim Ingold (ed.). Companion Encyclopedia of Anthropology — Humanity, Culture and Society. New York: Routledge, 1994. p. 648, tradução livre.

3 — Loïc Wacquant. “Mapear o campo artístico”. In: Sociologia, Problemas e Práticas, n. 48, 2005, p. 117.

4 — Sobre estre aspecto específico, é válido mencionar a importância dos estudos a respeito da Indústria Cultural inaugurados pela assim chamada Escola de Frankfurt na primeira metade do século XX. A análise de Walter Benjamin a respeito do papel da obra de arte na era de reprodutibilidade técnica está entre as mais influentes dentre os escritos seminais aí produzidos.

5 — Hélio Menezes & Rafael Hupsel. “Arte — Alfred Gell”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2015. Disponível em: <http://ea.fflch.usp.br/conceito/arte-alfred-gell>. Último acesso em 27 de outubro de 2020.

6 — Constantinos Proimos. “Art, Universals in”. In: James Birx (ed.). Encyclopedia of Anthropology Vol. 5. London: Sage Publications, 2006, p. 278, tradução livre.

7 — Calvin Tomkins. Duchamp — Uma biografia. São Paulo: Cosac Naify, 2013, pp. 204–206.

8 — A atitude vanguardista de Duchamp terminou por alçá-lo a um lugar emblemático na história da arte, sendo considerado, por alguns, como precursor de movimentos como o dadaísmo (marcado pela anarquia, humor e dessacralização da arte) e, por outros, como um ponto de inflexão irreversível na história da arte ocidental, que deflagraria, de forma sem precedentes, uma crise da representação e do papel da arte e do artista.

9 — Marcela Stockler Coelho de Souza. “A pintura esquecida e o desenho roubado: contato, troca e criatividade entre os Kisêdjê”. In: Revista de Antropologia, São Paulo, USP, v. 55, n. 1, 2012, pp. 209–249.

10 — Alfred Gell. Arte y Agencia — Una teoría antropológica. Buenos Aires: SB, 2016, p. 33, tradução livre.

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_antropólogo, barista informal, errante incorrigível, cantor de karaokê, sérião nas horas vagas