As vantagens de ter uma editora independente

ano II: ensaio
ano II: ensaio
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4 min readNov 9, 2020

Há três tipos de gente
Os que imaginam o que acontece
Os que não sabem o que acontece
E as que fazem acontecer

(Black Alien, em Um bom lugar de Sabotage)

Foi em meados de 2017 quando comecei a participar de editais para avaliar livros didáticos, processos que envolviam muito dinheiro. Foi em 2017 que também iniciei minha carreira dentro de uma editora de grande porte. Neste mesmo ano passei pelo meu primeiro plágio, acredite, dentro da própria editora. Recebi um duplo carpado no peito e percebi pela primeira vez quais eram as qualidades necessárias para ser um autor publicado. Obviamente, essas qualidades não se relacionavam com a capacidade de escrita.

Na época, sonhei em ter reconhecimento como coautora do livro que escrevi, e pensei que meus escritos sobre epistemicídio e questões de gênero seriam o suficiente para fazer com que um material bem avaliado fosse me tirar das viagens cansativas entre a casa, a universidade e o trabalho. Depois da decepção de perceber que nem os mais religiosos progressistas estavam imunes à ganância da apropriação do que é alheio, comecei a me livrar de todos os projetos nos quais atuava de graça.

Puxei todo o ar que tinha em meus pulmões e xinguei meu primeiro chefe. Recuperei o fôlego e xinguei o segundo chefe. E foi enquanto corria da parada de ônibus até o portão de casa às 23h que escutei a música do Sabotage e entendi que o mundo era assim: dos que imaginam o que acontece, dos que não fazem ideia do que acontece e dos que fazem acontecer.

Deixei de trabalhar para homens brancos da Universidade em 2018. Depois de uma temporada entre consultorias para o Ministério da Educação e um mestrado turbulento, entendi que estava pronta para pensar em minha própria editora. Dediquei-me ao curso de editoração e somei a isso toda a experiência que tive, do que não fazer, como editora de 2 revistas científicas, mais a ótima experiência com a malícia do mercado editorial, dos pormenores jurídicos, das malandragens da iconografia de livros e de autores que colocam estagiários para escrever suas obras. Com isso, criei a Oribê Editorial.

Entendo a Oribê como uma resposta a tudo o que vivenciei. Contra uma falsa meritocracia e a publicação de pessoas herdeiras. A Oribê é uma editora feminista com publicações independentes que tem como objetivo publicar e trabalhar com mulheres e autores/as emergentes. Criamos a Oribê como um projeto “guarda-chuva”, em que poderia fazer parcerias com consultoras para atuar na revisão e formatação de textos, com professoras para orientar as alunas que são negligenciadas dentro e fora da Universidade e começamos a adentrar no mercado de livros didáticos. Fizemos diversas formações políticas, filosóficas e artísticas e continuamos ofertando cursos livres. Com 2 apostilas lançadas com edições diferentes, decidimos que era a hora de lançarmos nossa primeira obra literária. Em meados de 2020 lançamos nosso primeiro livro literário com confecção artesanal. Até o fim do ano de 2020 temos mais 3 publicações agendadas.

Dentre todo esse processo de feitura de uma editora, tivemos diversas propostas indecentes, como quando entraram em contato conosco para realizar um caderno de provas estilo ENEM, só que com preços abaixo do estipulado no mercado para professores. Não fechamos o negócio. Já tive homens sendo orientados que após fracassarem em processos seletivos, culparam a editora, e meses depois foram aprovados utilizando nossos métodos de aprendizagem. Mas tivemos muitas alegrias, como pessoas entrando em contato conosco pedindo para fazer parte da equipe, de orientandas que retomaram a escrita e estão prestes a se formar, de pessoas enviando manuscritos incríveis e de pessoas que não nos conhecem apoiando nossos livros.

Sobreviver ao mercado editorial sendo editora independente é conviver com as doses diárias de tolerância com os sistemas de distribuição de encomendas, com os leitores que preferem livros com materiais ruins, com autores que nos enviam e-mail como se tivessem um rei na barriga. Contudo, não trabalhamos de modo precário e cada mensagem que chega até nós de felicitações e de confiança recarregam nossas energias.

Toda vez que lembro de como foi o começo da Oribê, lembro de um trabalho visual das Guerrilla Girls “As vantagens de ser uma mulher artista” (1988) em que as artistas, ironicamente, fazem uma crítica ao sistema das artes. Pensando nessa obra, decidi compartilhar com vocês as vantagens de ter uma editora independente.

1. Não abandonamos o trabalho em nenhum momento, é a certeza de que o sonho da editora vai estar contigo onde estiver;

2. Ficamos sem férias durante 2 anos e não temos dores de cabeça com companhias aéreas;

3. Não precisamos lidar com a subjetividade de muitos funcionários, até porque uma editora pequena e independente funciona com pouquíssimas pessoas;

4. Temos a atenção de homens brancos quando não publicamos seus textos;

5. Temos o carteiro como melhor amigo;

6. Fazemos sempre uma boa pesquisa de mercado para a compra de novos materiais e não pagarmos um absurdo por papel pólen;

7. Conhecemos nossas/os autoras/es e sabemos quando negligenciam os contratos editoriais;

8. Recebemos feedback constante do público;

9. Não precisamos ficar frequentando meios literários de que não gostamos;

10. Não precisamos fingir uma imparcialidade na escolha editorial de publicar determinados textos;

11. Não corremos riscos com a alta ou queda do dólar;

12. Podemos dizer que nossa editora não publica e nem orienta gente apoiadora do Bolsonarismo.

Por fim, aprendemos muito com as outras pessoas e deste modo, a música do Sabotage continua presente, mesmo depois dos quase três anos de editora.

Unidos a gente fica em pé
Dividido a gente cai
Quem falha cai

(Black Alien, em Um bom lugar de Sabotage)

Mayã Fernandes é escritora, ensaísta, podcaster e filósofa de bar. Doutoranda em Teoria e História da Arte pela UnB, mestra em Metafísica e graduada em Filosofia pela mesma universidade. É professora de Filosofia da Arte e Filosofia da Fotografia, desenvolvendo estudo sobre a imagem abstrata na Antiguidade e na Arte Moderna. Seu site é www.linhasdefuga.com.br

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