Romantismo ecossocialista

Entrevista com Michael Löwy

ano II: ensaio
ano II: ensaio
5 min readApr 20, 2020

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Nome de peso na intelectualidade — não só latino-americana como no mundo todo — o sociólogo Michael Löwy consagrou-se pelo seu pensamento marxista heterodoxo e não dogmático. Além de ser considerado um dos maiores pesquisadores das obras de Karl Marx, Rosa Luxemburgo, György Lukács, Lucien Goldmann e Walter Benjamin, desenvolveu trabalhos seminais sobre o Romantismo (conceito que para Löwy ultrapassa o terreno da arte e da literatura para abranger o pensamento econômico e filosófico), o Surrealismo, a Modernidade e, nas últimas décadas, o ecossocialismo, movimento este do qual é um dos pioneiros no mundo.

De Paris, onde reside desde 1969, Löwy nos concedeu a entrevista que você lê agora.

ano I: ensaio: O marxismo já não se faz tão presente na intelectualidade brasileira como antes. Esse fenômeno, para além da perpétua demonização que encontra na política e atual óbvios arautos, também parece encontrar, em partes, resposta dentro da própria esquerda que no século XXI catapultou as vertentes do pensamento identitário como sua maior força. Você acredita que neste novo cenário ainda há espaço para o marxismo? Este é conciliável com as novas linhas de pensamento que atualmente dominam as ciências humanas?

Michael Löwy: Considero que, como dizia Sartre, o marxismo é o horizonte de pensamento de nossa época. Vale tanto para hoje como para quando foi formulado, por volta de 1960. As tentativas de “superá-lo” só conduzem a um retorno a formas anteriores, anacrônicas de pensamento: idealismo, positivismo, liberalismo, materialismo vulgar etc. Agora, o marxismo no século XXI precisa integrar as contribuições dos principais movimentos sociais, o feminismo, o antirracismo, a luta dos sem-terra e dos sem-teto, a ecologia. Isto não significa assumir uma ideologia “identitária”, mas levar em consideração a diversidade das formas de opressão, dominação e destruição que resultam do capitalismo. Em particular, acredito na necessidade de um “ecomarxismo”, considerando a importância decisiva que tem, em nossa época, a ameaça de catástrofe ecológica.

ano I: Por vezes a obra de Walter Benjamin parece gerar no Brasil disputas um tanto quanto acirradas entre os acadêmicos, uma disputa para decidir quem tem a interpretação mais adequada ou a melhor gerência de seu espólio intelectual. Como você enxerga essas disputas?

Michael Löwy: São normais… A obra de Benjamin é mesmo complexa, polissêmica, às vezes hermética. E inevitável que hajam várias interpretações. Pessoalmente me sinto mais próximo daquelas que ressaltam a dimensão subversiva, critica, revolucionaria, de seu pensamento. Mas mesmo entre aqueles que privilegiam outros aspectos de sua obra, podemos encontrar contribuições interessantes.

ano I: Walter Benjamin foi, ao contrário de Marx, um intelectual, se não avesso ao progresso econômico trazido pelo capital, ao menos cético quanto às suas benesses para a sociedade. Num momento alarmante como o da atual pandemia de COVID-19 em que uma série de capitalistas e líderes estatais escancaram o valor do humano frente aos interesses econômicos, como poderíamos ler a obra de Benjamin e talvez tirar dela reflexões para um futuro pós-coronavírus?

Michael Löwy: Não só o coronavírus, mas já a crise ecológica mostra a que ponto tinha razão Walter Benjamin ao criticar as ilusões sobre o “progresso” trazido pelo “desenvolvimento das forças produtivas” nos quadros do capitalismo. Para ele estas ilusões estavam presentes, não tanto em Marx, mas sobretudo entre seus epígonos do século XX, tanto na social-democracia como no comunismo de tipo stalinista.

Francamente, não acredito que dirigentes capitalistas, econômicos ou políticos, vão sacrificar o “crescimento”, a “expansão” e a “conquista do Mercado” — em outras palavras, o lucro — para dar prioridade ao humano. Alguns podem até fazer alguns belos discursos com esse propósito, mas assim que a epidemia for embora, eles voltarão ao business as usual. Salvo se houver um movimento de luta suficientemente forte para mudar a relação de forças.

ano I: Ainda sobre o coronavírus: um dos efeitos da parada momentânea da produção global foi um recuo na poluição e, consequentemente, um curto alívio para o meio ambiente. Como podemos encarar esse fenômeno?

Michael Löwy: É verdade que, com a redução das atividades econômicas devido ao coronavírus, as emissões de CO2 diminuíram. Mas não é a epidemia que nos salvara da crise ecológica! Se queremos evitar que logo tudo volte como antes no quartel de Abrantes, precisamos nos organizar e lutar.

ano I: Como você enxerga o ensaísmo no Brasil?

Michael Löwy: De uma grande riqueza, diversidade e impacto sociocultural. Além disso, frequentemente, de inspiração crítica, e, mesmo marxista. A ultradireita vive denunciando o “marxismo cultural”: efetivamente, ele existe, mesmo se está longe de ser hegemônico. Meu ensaísta brasileiro preferido é o crítico literário Roberto Schwarz.

ano I: Em uma crônica de 2002 para o periódico El País, intitulada “O escritor argentino em sua tradição”, o já falecido escritor Juan José Saer responde a sua proposta inicial “¿Deben los poetas y novelistas se abstienen de escribir durante las crisis sociales y económicas?” Ele diz que, de fato, toda a literatura argentina é motivada por momentos de crise econômica, política, social ou todos juntos. Ao estendermos esse mapa para a América Latina e o contexto político atual que atravessa (como as manifestações no ano passado em todo continente ou os ataques que a Democracia tem sofrido no Brasil), como você acredita que a literatura se comporta nesse tipo de situação?

Michael Löwy: É ainda cedo demais para poder julgar como vai se comportar a literatura na América Latina frente ao contexto político atual…

ano I: O romantismo poderia ser uma via de pensamento — como já foi no passado, ou tal qual o surrealismo também o foi — para uma forma de arte revolucionária nestes tempos?

Michael Löwy: Existem inúmeras formas de arte revolucionária, o romantismo é apenas uma entre elas. Acredito que uma arte contrarrevolucionária, e o surrealismo em particular, não pertencem só ao passado, mas também há manifestações destes no presente. Existem artistas surrealistas no mundo inteiro, alguns organizados em grupos com atividades coletivas, outros seguindo um caminho mais individual. Outra forma de arte que eu definiria como romântica e revolucionaria é aquela produzida por artistas de comunidades indígenas na América Latina: referem-se a tradições do passado pré-capitalista para criticar a modernidade da sociedade burguesa.

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