Descrições e Existência

Cap. 4 de “Logic: A Very Short Introduction” (Graham Priest, 2000)

niva
Anotações de Filosofia
5 min readAug 19, 2020

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Partindo da distinção entre tipos de sujeitos de acordo com a sua determinação — nomes se referem a indivíduos determinados, enquanto quantificadores evocam indivíduos indeterminados — , podemos distinguir dois subtipos de nomes. Nomes próprios, como Mona e Romário, designam um objeto específico sem dar outra informação além de que este é o nome do objeto. Mona tem “Mona” como nome; Romário se chama “Romário. Já as descrições são um tipo especial de nome, que trazem informações sobre o objeto ao qual se referem: “O primeiro homem que aterrissou na Lua”.

A descrição especifica condições que são cumpridas por um único objeto. Apenas um homem foi o primeiro a aterrissar na Lua. Dizer “o homem que aterrissou na Lua”, por exemplo, não é uma descrição apta, já que vários homens aterrissaram na Lua, o que torna impossível saber a qual homem a descrição se refere. Seria como uma carta ser enviada à “rua Voluntários da Pátria” sem especificar a cidade — pode ser a Voluntários de Curitiba, a de São Paulo, a de Porto Alegre…

Da mesma forma, dizer “o homem que aterrissou em Marte” também não é uma descrição apta, já que nenhum homem aterrissou em Marte. [Nota-se aí que essa conceituação, adotada por Russell (1905, On Denotation), não dá conta de cenários fictícios.] A descrição que não se refere a um objeto único, seja porque múltiplos se encaixam na descrição ou porque nenhum se encaixa, é chamada nome vazio, já que não se refere a nada.

Nesse sentido, uma sentença que inclui em seu sujeito um nome vazio é automaticamente falsa. Isso porque toda sentença é formada pela estrutura sujeito+predicado, e só é verdadeira se for verdadeiro o que está sendo predicado do sujeito. Maria é loira só é uma sentença verdadeira se o predicado ser loira se aplica a Maria. Pra que isso seja possível, é necessário que o sujeito exista; Maria não pode ser loira se não houver Maria, e o homem que aterrissou primeiro em Marte não pode ter nascido nos Estados Unidos. Assim, toda sentença cujo objeto não existe é falsa. [Novamente, cabe lembrar que estamos trabalhando com a definição dada por Russell, que não abarca cenários fictícios. Dizer que “Sherlock Holmes é um detetive” não é dar uma sentença falsa; Sherlock Holmes é um objeto existente fictício. (v. capítulo anterior)]

Uma outra forma de colocar isso seria dizer que não podemos aplicar aos objetos vazios o Princípio de Caracterização, segundo o qual uma coisa tem as propriedades pelas quais é caracterizada. Considerando que toda descrição segue a fórmula “o único objeto que satisfaz tal e tal condição”, deve existir, para cada descrição, um (e apenas um) objeto em particular que satisfaça as condições especificadas. Isto é, para que “O homem que aterrissou primeiro na Lua” não seja um objeto vazio, é preciso que o objeto seja um homem e que tenha aterrissado primeiro na Lua. O objeto deve ter as propriedades pelas quais é caracterizado.

Vários argumentos filosóficos e matemáticos se aproveitam desse princípio para construir falácias, provando a existência de coisas que não existem. Partindo da condição “x é o maior número natural”, podemos considerar, a partir do Princípio de Caracterização, que o objeto que satisfaz essa condição é o maior número natural. No entanto, o maior número natural não existe, já que o conjunto de números naturais é infinito; sempre haverá um maior do que o anterior. Seria diferente, por exemplo, dizer que x é o menor número natural, pois este objeto existe: é o zero.

N = {0, 1, 2, 3…}

Outro argumento que cai nesta falácia, conhecida como petição de princípio (begging the question), é o argumento tautológico ontológico para a existência de Deus. Em uma forma simples, o argumento é o seguinte:

Deus é o ser com todas as perfeições.

A existência é uma perfeição.

Então Deus possui existência. (Isto é, Deus existe.)

Esse argumento segue o raciocínio do Princípio de Caracterização: Deus é caracterizado por possuir todas as perfeições, e portanto deve tê-las. Considerando a premissa de que a lista de perfeições (onisciência, onipotência, perfeição moral, etc) inclui a existência, temos que Deus é caracterizado por possuir existência, então deve possuí-la — Deus existe. No entanto, para que “o ser com todas as perfeições” não seja um nome vazio, precisamos presumir que Deus existe; do contrário, a descrição não se refere a nada, e o argumento é automaticamente falso. Isso significa que o raciocínio pode ser reescrito como:

Deus, que existe, é o ser com todas as perfeições.

A existência é uma perfeição.

Então Deus possui existência. (Isto é, Deus existe.)

O que se resume a:

Deus existe.

Logo, Deus existe.

Simbolização

A forma lógica da descrição é “o objeto, x, tal que x satisfaz condição C”. Um exemplo seria reescrever “O homem que aterrissou primeiro na Lua” como “o objeto, x, tal que x é um homem e x aterrissou primeiro na Lua”.

Ao dizermos que o número dois multiplica x e y, podemos dizer 2x e 2y, ou podemos dizer 2(x + y), agrupando as duas contas sob o fator que elas têm em comum. Da mesma forma, vemos que tanto “é um homem” quanto “aterrissou primeiro na Lua” são condições correspondentes a um objeto x que existe, então podemos agrupá-las: ℩x(x é homem e x aterrissou primeiro na Lua). ℩x (sendo ℩ a letra grega iota) corresponde a “o objeto x, tal que”.

Substituindo cada condição por uma letra, temos ℩x(xH & xL). Esse grupo de condições pode também ser substituído por uma letra, correspondente a condições℩x Cx. Essa é a simbolização da forma lógica da descrição. O mesmo aconteceria se a condição fosse uma só, já que Cx corresponde a “x satisfaz tal e tal condição C” — isto é, as condições são consideradas em grupo. O objeto deve corresponder a todas.

Por fim, já que a descrição, sendo nome, é um sujeito, podemos criar sentenças como “O homem que aterrissou primeiro na Lua é americano”. Para seguir a simbolização padrão de sentenças, sujeito+predicado (sP), podemos encurtar ℩x Cx para uma letra qualquer, como a, e uni-la ao predicado: aU.

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